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OS RITUAIS DE ANASTÁCIA
Acadêmico: Gabriel Chalita
Nos meus rituais de hoje, agradecer é um verbo que jamais deixou de ser conjugado. 

Os rituais de Anastácia

Criança era eu naqueles dias. Dias que não se apagaram em seus significados. Dias que são como luzes distantes que, quando necessário, ainda posso ver. 

Eu via Dona Anastácia, vizinha de minha avó em uma pequena vila que ficava não muito longe de onde eu morava. Dona Anastácia era uma mulher de rituais, era o que minha avó observava. Eu, provavelmente, não sabia o que eram rituais. Eu sabia os dizeres pensados de Dona Anastácia. Um dia, ela disse à irmã, “Você precisa ter uma conversa franca com sua interioridade”. E prosseguiu, “Isso vai ajudar você a vencer esse estado de fadiga, essa luta inglória com o que não te pertence”. 

Foi minha avó quem me explicou que se tratava de uma dor de amor o que a irmã de Dona Anastácia sofria. O marido a havia deixado e já fazia desfile com uma outra, o que, em cidade do interior, gera ainda mais falatório, ainda mais tristeza. 

A irmã de Dona Anastácia tentou colocar fogo em uma casa que tinha com o marido, próxima à cidade. Em um pequeno sítio. Foi impedida pelo velho funcionário que a viu criança. 

A irmã chorou no colo da irmã. A irmã sustentou a grandeza ao impedir que a alma da irmã fosse perpassada por desistências. “É preciso deixar ir, é preciso olhar outras margens”. 

Minha mãe achava que minha avó antecipava conhecimentos à minha pouca idade. Minha avó discordava. Com cuidado, o mundo verdadeiro deve ser apresentado, mesmo nos inícios. 

Dona Anastácia tinha muitos rituais. O seu amanhecer era de conversas com a roseira que enfeitava o seu jardim. Jogava água dizendo palavras leves, palavras alimentadoras. Em sua mesa de cozinha, ela gostava de limpar o feijão, de escolher o arroz, de cozinhar. Sempre havia uma vela acesa, perto de alguns santos de sua devoção. Conversava com eles como se fossem velhos amigos. Dizia agradecimentos e, vez em quando, alguma reclamação. 

Embora fossem vizinhas, ela, sempre que visitava minha avó, levava algum alimento. Minha avó dizia que não era necessário. Ela insistia. As delicadezas nunca são dispensáveis. 

Dona Anastácia tinha o horário da oração. Às seis da tarde. Como moravam no alto da cidade, a vista era bonita. Para uma serra. Para um rio. Para as casas que começavam a se iluminar no despedir do dia.
 
Ela tinha os costumes da mãe. Do jejum na quaresma. Das roupas escolhidas com cuidado para a missa de domingo. Quando morreu João, seu marido, ela vestiu luto durante um ano. Sem arroubos nem dizeres de amargura, apenas o luto. Um tempo de compreensão da despedida. 

Ela gostava das procissões. Achava bonito ver a cidade caminhando junto em canções de fé. Aos que não acreditavam, ela dizia silêncios. Compreendia o tempo das compreensões e jamais admitia saber ela a verdade. 

A verdade estava no que dependia dela. Dos rituais que a ela ensinaram e que o tempo fez permanecer. Alguns ela dispensou. Eram desnecessários diante do amor. 

Eu a convidei para minha formatura. Ela foi e antes enviou uma carta para que eu lesse no dia. Ainda a tenho guardada. Ela dizia sobre o significado da profissão que abraçamos. Ela era professora aposentada, e eu conversava com os medos dos inícios. Na carta, há um trecho que diz, “Filho, nunca se esqueça de agradecer ao entrar em uma sala de aula e de pedir que você prossiga sendo fiel à sua intenção primeira de educar com amor”. E prosseguia, “Faça isso como um ritual, para que os anos não te atropelem com os seus cansaços, permaneça fiel à sua escolha de vida, ao seu chamado interior”. 

Naquele interior em que eu nasci, havia Dona Anastácia e tantas outras e outros, também. Mulheres e homens que viveram um mundo inteiro em um lugar tão pequeno do mundo. E que me ensinaram a viver. Quando desaprendo, olho para aqueles tempos distantes e reconheço a luz. 

Nos meus rituais de hoje, agradecer é um verbo que jamais deixou de ser conjugado. 

Obrigado, Dona Anastácia, quem sabe se, das moradas do mistério, cartas de saudade possam ser lidas.

Publicado em O Dia, em 25 05 2025



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