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![]() Acadêmico: José Renato Nalini Nos tempos de Silvio Romero, enfrentava-se o desafio das agruras da gramática. Hoje, pode-se dizer, como ele afirmava em relação à metafísica: para a imensa maioria, a gramática morreu
Agruras da gramática O ensino do vernáculo em nosso País parece capengar. Será que não é um excessivo apego à forma e culposa negligência da substância? Tento me explicar. Fazer com que crianças aprendam a fazer análise sintática, decorar os tempos verbais, classificar advérbios, exigir o rigor no uso castiço de um idioma que é dinâmico e está na boca do povo pode fazer com que a juventude considere enfadonho esse aprendizado e se desinteresse da leitura. Tão agradável, tão mágica, para quem aprendeu a saborear obras escritas por verdadeiros gênios de nossa literatura. Alguns espíritos visionários e pioneiros já se indispunham com o formalismo. Houve tempo, no Brasil, em que a colocação dos pronomes era motivo de ásperas polêmicas filosóficas e gramaticais. Utilizava-se do tema para invocar a rebeldia brasileira, que não se curvava aos cânones clássicos do português luso. Os litígios eram calorosos e muito rudes. Uma das vozes que se altearam para flexibilizar o uso do pronome foi Silvio Romero. Quando lia um texto seu para grupo de amigos, foi chamado à atenção porque usara do pronome oblíquo em frase negativa. Ele sabia, mas fez de maneira deliberada. Gostava de zombar dos gramáticos, aos quais não se cansava de alfinetar. E respondeu à crítica: - “Eu bem sei que a negativa atrai o pronome oblíquo, mas vou deixar a coisa assim, para mexer com os demônios!”. E conservou a frase, que adquiriu sentido muito especial para o diálogo que então se travara: - “Não sinto-me com forças para responder...”. Ele não conferia a esse problema a menor importância. Até porque não o considerava um problema. Escrevia no impulso, ao sabor de sua vivacidade combativa. Pouco lhe importava se a frase não estivesse compatível com os padrões lusitanos. Quando a censura recorrente o amolava, costumava responder: - “Eu não me interesso em colocar pronomes, mas sim em colocar ideias!”. Sempre fora alguém alheio ao que pensava a maioria. Desde muito jovem. Quando defendeu tese na Faculdade de Direito do Recife, aos vinte e quatro anos, afirmou a um dos examinadores que o arguia e que lhe formulou questão sobre metafísica. - “A metafísica não existe mais, Senhor Doutor! Se não o sabia, saiba!”. O examinador, já irritado – era o Dr. Coelho Rodrigues, respeitado Catedrático da modelar escola jurídica do Recife – replicou: - “Não sabia!”. E Sílvio, espicaçado pelo tom irônico do mestre: - “Pois vá estudar e aprender, para saber que a metafísica está morta!”. No mesmo tom altivo, o Dr. Coelho Rodrigues continuou: - “Foi o senhor que a matou?”. E Silvio, erguendo simultaneamente corpo e voz, desabusadamente: - “Foi o progresso, foi a civilização!”. Como aí a Banca inteira se pusesse a rir, em atitude que ele considerou de escárnio, o doutorando simplesmente deixou a sala. Ao sair, ainda falou, de costas para seus examinadores: - “Não estou para aturar esta corja de ignorantes, que não sabem nada!”. Assim era essa criatura notável, tão famosa quanto incompreendida, chamada Silvio Romero. Quando polemizava, utilizava-se de um recurso caricatural: deformava o nome do adversário com quem discutia ou então lhe arranjava um apelido. José Veríssimo, num debate, foi chamado por ele de José Burríssimo. Rosendo Muniz Barreto era Horrendo Muniz. Fran Pacheco, publicista português, foi convertido em Trampa Seca. Já não existem personalidades que saibam se servir das armadilhas da “Última flor do Lácio” para trazer ditos humorísticos, curiosos ou criar frases que depois alimentem conversas. Em compensação, boa parte das novas gerações não se preocupa com a correta colocação do pronome, até porque sequer sabem o que significa pronome e sua importância para o exercício da escrita e da fala. Nos tempos de Silvio Romero, enfrentava-se o desafio das agruras da gramática. Hoje, pode-se dizer, como ele afirmava em relação à metafísica: para a imensa maioria, a gramática morreu. A bem da verdade, e para manter bruxuleante a chama esperança, para alguns – ainda que bem poucos, sobreviventes raros da confraria do português de berço, ela continua bem viva. Publicado no Estadão/Blog do Fausto Macedo, em 15 05 2025 ![]() ![]() |
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