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O MENINO E O MURO
Acadêmico: Gabriel Chalita
Não sou das crenças de que tudo esteja escrito antes. Antes de começarmos, inclusive. Sou professador da liberdade. Mesmo com dor.

O menino e o muro

Era um dia triste. Voltei à minha cidade para a despedida de uma professora. De uma professora que, na infância, havia compreendido os meus medos e oferecido coragem.

Cruzei os olhares de tantos que estudaram comigo. Difícil reconhecer. Mudamos muito. Um ou outro dizia algum passado juntos e, então, abraçávamos a memória que restou. A filha da minha professora também tem os seus filhos. E os filhos dos filhos. Crescidos já. É o que o tempo faz. 

Depois de devolvermos à terra o corpo de minha professora, caminhei por entre os outros túmulos buscando a volta para casa. E, no caminho, vi dois bichinhos de pelúcia em cima de uma sepultura. A sepultura estava ao lado de um muro que dava para a vida. 

Olhei a data. Da chegada e da partida. Menino demais para despedir. Olhei os dois bichinhos deixados há pouco. Enfrentariam a noite sem o menino. Um muro interrompeu o prosseguir do menino.
Depois do muro, havia um campo de futuros aguardando florescimentos. Quem fez o muro? Quem impediu o crescimento?

Pensei que poderia ter eu ido antes de viver o que vivi. Quem decide quem vai menino ou quem vive mais? 

Não sou das crenças de que tudo esteja escrito antes. Antes de começarmos, inclusive. Sou professador da liberdade. Mesmo com dor. 

Fiquei pensando na mãe do menino, tão mais fácil acreditar que havia chegado o seu dia. Assim fosse, as guerras, as doenças, os acidentes seriam decididos não por homens. Assim fosse, teríamos poder nenhum na escolha do viver. 

Os dois bichinhos de pelúcia estavam perto da foto do menino e dos dizeres que vinham abaixo do nome. "Partiu para o céu o anjinho mais amado do mundo".
 
Uma antiga amiga de escola, que caminhava ao meu lado e que viu o meu estacionar diante daquela dor comentou sobre o enterro do dia anterior. E explicou a causa do muro no futuro do menino. Não há explicação convincente na despedida das crianças. Não para mim, um modesto colecionador de esperanças. 

O meu coração ganhou voo próprio e foi visitar aqueles pais partidos. O que estariam fazendo em casa, no dia seguinte ao dia mais triste de suas vidas? O quarto ainda por arrumar? Os olhares olhando os cantos e brincando ainda com a presença do amor que veio para ficar e não ficou?

Minha amiga conhece a família. Disse que a mãe gosta muito de mim, que fala dos meus textos, dos meus dizeres. Que seria bom que a visitássemos. Meus traçados eram voltar para minha casa depois do sepultamento da minha professora.Passar na casa da filha, talvez. Tomar café com lembranças. Ouvir histórias e partir. 

Será que eu incomodaria a família do menino enterrado tão perto do muro, acompanhado de dois amiguinhos de pelúcia? Se fosse visitar, o que deveria dizer? Um muro interrompeu a alegria?
Tenham fé? 

E se me respondessem que têm? E se, depois da resposta, viesse a pergunta e o que fazemos com a dor? Ou ainda, onde está o nosso menino agora? Um dia nos encontraremos? Ele continuará criança ou, na eternidade, ele vai crescendo e quando nos encontrarmos será difícil de nos reconhecermos?

Não. A eternidade não é como um cemitério. É um outro nascer. É um outro encontrar. É uma felicidade sem muros. 

Enquanto as perguntas e respostas faziam ciranda nos meus pensamentos, a filha de minha professora foi ao nosso encontro dizendo para permanecermos juntos um pouco mais. Resolvi ir com ela. E sentir no caminho se deveria ou não visitar a dor daquela família. 

O sol do dia do sepultamento estava lindo. No cemitério da cidade em que nasci, os pássaros cantam o que os mortos não podem cantar. Ao menos para nós. Ao menos para o nosso entendimento. Um vento leve sopra em mim que há outros cantos em outros cantos...

É verão e a lembrança da minha professora se mistura à lembrança da criança que fui e dos bichinhos de pelúcia da criança que se foi. 

Talvez eu visite seus pais, talvez. Eu ainda não sei. Eu nada sei.

Publicado em O Dia, em 19 01 2025



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