Compartilhe
Tamanho da fonte


A FUNÇÃO DA REDUÇÃO DA JORNADA DE TRABALHO
Acadêmico: José de Souza Martins
A redução da jornada não tem sentido sem uma política de administração do tempo livre obtido com essa inovação.

A função da redução da jornada de trabalho

O projeto de emenda constitucional que reduz a semana de trabalho de seis para quatro dias, apresentado pela deputada federal Erika Hilton, em vez de um debate sobre o que é de fato a questão social do trabalho na economia moderna e na perspectiva das carências extra-econômicas dos trabalhadores, gerou uma celeuma unilateral sobre os prejuízos dos empregadores.

O Brasil adotou a jornada de 8 horas de trabalho em 1908, há 116 anos portanto, para atalhar os imensos abusos que havia em nossa indústria nascente: sete dias de trabalho por semana, doze horas por dia, sem distinção entre homens e mulheres nem entre adultos e crianças. Os mestres de secção de fábrica ainda
se achavam no direito de bater nas crianças operárias para discipliná-las.

Na verdade, no campo e na cidade, o trabalho livre proclamado em 13 de maio de 1888 chegara até nós impregnado de sobrevivências da escravidão apenas lentamente abolida. Regulada por uma sucessão de etapas, como a do Ventre Livre e a dos Sexagenários.

Mesmo na formação do proletariado industrial, o capitalismo brasileiro tem recorrido a técnicas sociais do que é de fato extensão disfarçada da jornada de
trabalho.

No golpe de 1964, a jornada de trabalho foi um dos alvos não confessados. Isso foi ficando evidente lentamente. A economia voltada para dentro foi sendo substituída pela orientação liberal e a economia voltada para fora. Para o crescimento econômico sem desenvolvimento social.

O nacional-desenvolvimentismo anterior ao golpe, pressupunha a ampliação do mercado interno, o desenvolvimento econômico com desenvolvimento social.
Uma figura referencial dessa política foi Celso Furtado, que fez o doutorado em Cambridge com Joan Robinson, que fora assistente de John Maynard Keynes, pai da teoria da renda e do emprego.

De certo modo, Furtado dava sentido à ideologia econômica de um fundadorda Fiesp, Roberto Simonsen, professor de história econômica na Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

Com a ditadura e o liberalismo de Roberto Campos, implantou-se aqui uma economia que reduzisse a relevância do salário, mas não, no mesmo ritmo, a
relevância do trabalho na produção. Que, reduzisse o risco político de uma classe operária organizada. O objetivo foi o de baratear o trabalho e amansar o
trabalhador por meio da repressão política.

Essa fase da história do trabalho no Brasil foi conhecida como a do “arrocho salarial”. O arrocho não foi apenas o da redução dos reajustes salariais em níveis inferiores ao do crescimento da inflação e dos preços. Os trabalhadores de regiõescomo a do ABC, por essa época, diziam da situação adversa; “cada vez mais sobra mês no fim do salário”.

Importante e respeitada instituição de pesquisa e estudos sobre as relações de trabalho, o DIEESE, de São Paulo, constatou então que em relação à situação
salarial do regime anterior, quando um operário sustentava uma família, agora eram necessárias duas pessoas de uma mesma família para sustentá-la.

A proporção do salário no capital caíra, as empresas comprando duas jornadas de trabalho por pouco mais do que o preço de uma. Disfarçadamente a jornada dobrou. A proporção do dispêndio com força de trabalho tornou-se
menor do que a do dispêndio com equipamentos, edifícios e matéria-prima. O capitalismo brasileiro passou a funcionar como se fosse moderno, ao se tornar de
fato atrasado.

Quando comecei a trabalhar em fábrica, em 1950, a jornada era de 8 horas, seis dias por semana. Quando passei para uma fábrica maior e mais moderna, a
jornada era de cinco dias e meio de 8 h por dia. Quando ingressei na USP, trabalhava numa empresa de jornada de 8 horas, cinco dias por semana. Nenhuma das empresas ficou pobre por isso.

Somos um país em que ainda há trabalho escravo na formação de capital originário de empresas ou que asseguram lucro extraordinário para grandes empresas. Portanto, um capitalismo atrasado que só por imitação e fingimento se parece com o capitalismo dos países ricos. Um capitalismo irracional e mal administrado que enxuga o mercado e mata sua própria prosperidade.

A questão não é liberar o trabalhador apenas para a família e para a religião, como alguém argumentou. A redução da jornada não tem sentido sem uma política de administração do tempo livre obtido com essa inovação.

A novidade seria, como aconteceu nos países cultos e desenvolvidos, liberar os trabalhadorespara si mesmos.

A questão é ocupar o tempo livre, da nova jornada resultante, com atividades culturais, como a música, o teatro, a literatura, a arte, o cinema. As atividades que saciem nossa fome secular de saber e nos libertem da ignorância que nos barateia e nos oprime.

Publicado no jornal Valor Econômico, em 06 12 2024



voltar




 
Largo do Arouche, 312 / 324 • CEP: 01219-000 • São Paulo • SP • Brasil • Telefone: 11 3331-7222 / 3331-7401 / 3331-1562.
Imagem de um cadeado  Política de privacidade.