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A MULTIDÃO NA POLÍTICA
Acadêmico: José de Souza Martins
O golpe vem sendo preparado, muito provavelmente, desde que o regime militar foi encerrado com a eleição de Tancredo Neves.

A multidão na política

Há indicativos de que o golpe de Estado é continuo, de autoria disfarçada. Nesse sentido, as descobertas recentes da Polícia Federal representam um fato histórico inovador que pode tornar real a democracia no Brasil

A notícia da prisão de oficiais do Exército e de um policial federal mudou as referências de compreensão do atentado terrorista em Brasília, no dia 13 de novembro. A descoberta de indícios de um plano para matar o presidente e o vice-presidente da República, eleitos em 2022, Lula e Alckmin, e, também, o ministro Alexandre de Moraes pôs o homem-bomba num cenário
sociologicamente mais abrangente. A divulgação da lista dos 37 indiciados no processo de apuração da tentativa de golpe de Estado livrou o terrorista da solidão que lhe imputavam.

Jornalisticamente, a diversificação de indícios de uma situação política crítica obscureceu a relevância noticiosa da ação do homem-bomba. Mas revelou o sentido sociológico e explicativo da rede de ações e relações ocultos no processo do que se tornou o de nossa decadência política.

Cessaram, na mídia, as cogitações que explicam a suposta solidão do autor do atentado contra o STF. Muito depressa bolsonaristas defenderam-se ao estranhar o correligionário extremista. Negaram a eventual responsabilidade coletiva na instigação difusa a que agisse como agiu, nos lugares em que o fez. Cuspiram-no.

Minha hipótese é a de que o golpe ainda está pendente. Sem comando, os disseminados executores ainda estão soltos e com ordens distribuídas, implantadas no subconsciente. Isso é próprio do comportamento de multidão.

Os interrogatórios divulgados dos participantes da intentona de 8 de janeiro de 2023 e as revelações dos indiciamentos de agora sugerem que o golpe é fragmentário. É lento e distributivo de mandatos e tarefas aos anônimos de um radicalismo exaltado e manipulado contra inimigos imaginários e de ficção.

Para esses atores, os conspiradores inventaram uma identidade, “patriotas”, que se apossaram dos símbolos nacionais e baniram da concepção de pátria o povo brasileiro. Identificaram as instituições do Estado democrático de direito como alvos de desmoralização e destruição. Esses atores estão disseminados pelo país inteiro, escorados em municípios e em instituições locais, focos eventuais de poder paralelo, golpista e subversivo.

Os autores e patrocinadores não serão identificados apenas seguindo o dinheiro e procurando os financiadores. O patrocínio é político e o golpe vem sendo preparado, muito provavelmente, desde que o regime militar foi encerrado com a eleição de Tancredo Neves, contra o candidato da ditadora agônica.

A Constituinte de 1988, na infiltração do artigo 142, cuja ambiguidade sugere a tutela das Forças Armadas sobre as instituições, animou os golpistas. Mesmo que o STF já tenha reconhecido que elas não são um poder moderador.

Na lógica do que vem ocorrendo, o que conta é a dúvida e a incerteza sobre esse artigo da Constituição, sobre a legalidade das eleições no uso da urna eletrônica, sobre a inocência das vítimas de estigmatização política, sobre a legitimidade da pluralidade social e política e da diversificação das doutrinas políticas.

A concentração do fogo golpista no STF e na definição da multidão como sujeito político são indicativos de que o golpe de Estado é contínuo, de autoria disfarçada. Nesse sentido, as descobertas recentes da Polícia Federal representam um fato histórico inovador que pode tornar real a democracia no Brasil.

A coalizão política de extrema direita, difusa, baseada na disseminação da suspeição de improbidade e de subversão contra todos, ficou exposta. A visibilidade lhe é adversa.

O novo direitismo internacional tem aqui como combatentes os confusos setores médios, sem protagonismo político e histórico. Os que, de repente, são tratados por figuras simbolicamente relevantes da estrutura de poder, como coadjuvantes. Uma forma de qualquerismo subdesenvolvido, em que qualquer um se considera poderoso porque cúmplice de quem tem funções de poder.

ente que nunca foi ninguém na história do Brasil colocada na linha de frente para defender a pátria e em nome dela falar e mandar. Surge a multidão insubmissa, trajando fantasias com os símbolos da pátria, pensando-se imprescindível, assumindo o encargo de ocupar e desmoralizar as instituições e o Estado. Uma volta pós-moderna ao cangaço e dos régulos do poder pessoal.

Os militares envolvidos na conspiração e na tentativa de golpe de Estado, e os seus acólitos civis, não conseguem compreender, porque não têm formação para isso, o que é o poder dos opostos. O avanço das investigações revela que na verdade eles é que são cúmplices dos manifestantes da Praça dos Três Poderes. Direito e avesso, nas contradições próprias do processo histórico, invertem-se. Os que pensavam enquadrar os outros estão enquadrados. O poder se chama Constituição e não Bolsonaro.

Publicado no jornal Valor Econômico, em 29 11 2024





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