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QUAL A MISSÃO DO INTELECTUAL?
Acadêmico: José Renato Nalini
Contribuir para a redução da desigualdade, para a eliminação da miséria, para devolver à natureza o que dela se subtraiu, de forma insensata e incessante, qualificaria a missão do intelectual contemporâneo

Qual a missão do intelectual?

A era do conhecimento é um labirinto instigante para quem se proponha a pensar o que aconteceu com o intelecto. A disseminação de informações torna praticamente impossível entender o que realmente vale a pena assimilar. Nunca houve tamanha oferta de dados. A conviver com a estupefação de quem se sente perdido ante sua profusão.

Excesso de informação não equivale a conhecimento. Assim como ensinar a decorar, a treinar a memória, - método fossilizado de adestramento do estudante – não significa preparo à aquisição de sabedoria.

O século passado consagrou intelectuais públicos respeitados. Suas posições eram conhecidas e suas falas disputadas. Hoje, nivelou-se de tal forma a superficialidade, que o mundo se tornou palco de influencers, muitos dos quais reprodutores de platitudes, quando não de tolices repetidas à exaustão.

Milhares ou milhões de seguidores se fanatizam ao acompanhar lideranças cujo empenho é multiplicar a tribo que lhes garante visibilidade. Nada de muito profundo, nada que faça pensar. Não há mais tempo para reflexão, menos ainda para a meditação. É o self-service da banalidade, ao alcance de qualquer indivíduo capaz de ler.

As vozes austeras de quem se proponha a “dizer a verdade” à sociedade se perdem perante a incapacidade coletiva de elaboração de um pensamento mais consistente. As redes sociais priorizam a celeridade e a singeleza. Com isso, chegam ao simplório, ao vulgar, ao destituído de estética e de bom gosto.

Elevada exposição e projeção na mídia é preferencialmente destinada ao exótico, ao bizarro e até ao ridículo. O círculo cada vez mais restrito de intelectuais com as condições de influenciar a formulação de políticas públicas enfrenta muita vez os inescapáveis vícios do corporativismo, do favoritismo, do cancelamento, das posturas ideológicas responsáveis pela exclusão de potencial concorrente. Sim, porque personalidades exuberantes também são acometidas daquelas pequenas fissuras de caráter, tão próprias à frágil – quando não miserável – condição humana.

Quantas intrigas não se medram nos departamentos, com traições perpetradas com “punhos de renda”, para impedir a ascensão de um competidor que ameace o monopólio do brilho de um pensador? Tem-se registrado a ocorrência de sutil aproveitamento de pesquisa alheia para conferir consistência a escritos insuscetíveis de alcançar a ambicionada envergadura e o ansiado nível de qualidade.

Não se pense que o ambiente erudito seja imune às minúsculas manifestações da falibilidade da espécie racional. Ocorrências que tangenciam a mais infame conduta antiética não são escoteiras em espaços que deveriam ser o paradigma da correção, da ombridade, da lisura comportamental.

A busca de êxito e de reconhecimento leva pesquisadores a venderem o seu talento para grupos econômicos interessados em sustentar teses insustentáveis. Como a de ignorar o aquecimento global, de desvinculá-lo do consumismo, do egoísmo e do narcisismo de uma sociedade que ignora as consequências de seu descaso cruel para com o único habitat disponível à espécie.

Os holofotes da mídia conseguem ofuscar a consciência e a flexibilizar os escrúpulos. A visibilidade, o aplauso, a sucessão de convites para eventos, para simpósios, congressos, seminários, para o insaciável turismo jurídico, é uma vis atrativa a que se submetem aqueles que perdem a noção de sua responsabilidade social.

O mundo seria melhor se à arrogância de alguns “sábios” se contrapusesse um conjunto de virtudes fracas, na concepção de Norberto Bobbio. A sensibilidade, a humildade, a empatia, a tolerância. Tudo aquilo que dá sentido real à efêmera trajetória de cada humano sobre este sofrido planeta.

Contribuir para a redução da desigualdade, para a eliminação da miséria, para devolver à natureza o que dela se subtraiu, de forma insensata e incessante, qualificaria a missão do intelectual contemporâneo. Um ser – paradoxalmente, também em extinção, se vier a prosperar a tese da inviabilidade de convívio entre pessoas que pensem de forma diversa, até à imposição de uma falsa homogeneidade, em tudo antagônica à diversidade ínsita e própria aos racionais.

Publicado no jornal O Estado de S. Paulo/Blog do Fausto Macedo, em 09 08 2024



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