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BEIJAR A MÃO DE UM JUSTO
Acadêmico: José Renato Nalini
Ruy Barbosa nos legou o exemplo de sua vida. Recebe, é verdade, aquela glória tardia, gelada e imperceptível, que é o reconhecimento depois da morte.

Beijar a mão de um justo

O habeas corpus é a chave da liberdade para quem a tiver subtraída ou turbada. Sua origem é o direito anglo-saxão, mas sua implementação no Brasil se deve muito a Ruy Barbosa, admirador da tradição britânica.

Ele próprio, o advogado Ruy, impetrou habeas corpus em favor de presos e perseguidos, notadamente na violenta gestão do Marechal Floriano Peixoto. Só que o Supremo Tribunal Federal, outra criação de Ruy, entendia denegar a ordem. Por entendimento jurisprudencial, formalismo ou mera submissão ao tirano.

Eis que um dia, um juiz teve a coragem de discordar. O Ministro Piza e Almeida, juiz paulista, quebrou a unanimidade da Corte. Foi um momento de assombro, em que a alma nacional se viu captada e cooptada pelas vibrantes, porém singelas, palavras de um julgador.

Encerrada a sessão de julgamento, Ruy, o poderoso tribuno, festejado no Brasil e no mundo, depois de sua performance na Conferência de Paz em Haia, no ano 1907, humilde, tremule, titubeante, aproximou-se do magistrado Piza e Almeida e lhe pediu para beijar a mão.

Para os biógrafos de Ruy, foi esse o momento culminante da vida do grande brasileiro. No futuro, que é hoje, decorridos cem anos de sua morte, na história de sua existência, quando se quiser encontrar um gesto simbólico, o momento cristalizador de sua grandeza, é esse beija-mão. A humilde súplica desse ósculo nas mãos de um justo.

Ruy, sempre muito pródigo em escrever, registra o episódio, na sugestiva expressão de seu estilo:

“Havia no tribunal, ao cair dos votos que denegavam o habeas corpus, a impressão trágica de um naufrágio, contemplado a algumas braças da praia, sem esperança de salvamento, de uma grande calamidade aos nossos olhos, de uma sentença de morte, sem apelo, que ouvíssemos pronunciar contra a pátria, do bater fúnebre, pregando entre as quatro tábuas de um esquife, a esperança republicana... Quando, subitamente, fragorosa salva de palmas, seguida ainda por outra, após a admoestação do presidente, nos deu o sentimento de uma invasão violenta da alegria de viver. Era o voto do Sr. Piza, concedendo o que todos os colegas haviam recusado. E, sob a influência de uma emoção religiosa, que me recorda vivamente a de minha adolescência, aproximando-se alvoroçada e trêmula do altar para receber a minha Primeira Comunhão, o Deus de meus pais, eu me cheguei depois da sessão, quase sem voz, ao Sr. Piza e Almeida, pedindo-lhe que me permitisse o consolo de beijar a mão de um justo”. É o que consta do livro “O Estado de Sítio, sua natureza, seus efeitos, seus limites”, um dos muitos que Ruy publicou em vida.

Quantas vezes um voto vencido não retrata a Justiça, por divergir da maioria que prefere trilhar caminhos já palmilhados por uma vetusta jurisprudência? Quantos justos ainda têm coragem de discordar, quando é mais fácil acompanhar o relator? Diz-se até que o colegiado se converteu em falácia, pois é raro que um julgador, para fazer o que considera Justiça, ouse não acompanhar o Relator, eis que as formações gregárias procuram seguir a fórmula “pássaros de igual plumagem”.

Na minha experiência pessoal, sempre encontrei magistrados probos e corajosos. Nunca mesclei o respeito pessoal, até a amizade, consolidada no decorrer dos anos, com eventual contrariedade em relação a meus votos. Repeti qual mantra: não disponho do monopólio da verdade. E não hesitei em voltar atrás, quando meus companheiros de mister me convenceram de possuir a melhor tese.

Todavia, é um episódio a ser celebrado. Quem faz o justo concreto com a sensibilidade de estar persuadido de que mudará a vida de um semelhante, é provido de destemor. O fel da injustiça é muito amargo e não ameniza com o passar do tempo.

Ruy Barbosa nos legou o exemplo de sua vida, mais completa do que a sempre invocada “Oração aos Moços”. Trabalhou durante toda a sua existência, que terminou fisicamente em 1º de março de 1923. O que produziu continua disponível para uma nação que não lê, que não gosta de escrever, que não estuda português. Modelo de virtudes esse baiano que sofreu muito, por certo. Foi exilado. Para quem tem consciência de seu valor, o amargor das injustiças humanas e das dores morais é ainda – e dolorosamente – mais amargo do que para os outros mortais.

Recebe, é verdade, aquela glória tardia, gelada e imperceptível, que é o reconhecimento depois da morte.

Publicado no Estadão/Blog do Fausto Macedo, em 12 04 2024



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