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O PREÇO DA CALÚNIA
Acadêmico: José Renato Nalini
A mentira, a invenção de fatos, a atribuição de responsabilidades falsas em relação às pessoas existe desde que o ser humano passou a conviver.

O preço da calúnia

Hoje a coisa se chama “fake news”. Mas a mentira, a invenção de fatos, a atribuição de responsabilidades falsas em relação às pessoas existe desde que o ser humano passou a conviver. A mente racional tem inúmeras tonalidades. Nem todas elas róseas e benfazejas. A persistência da miséria e das injustiças é o atestado de que o mal parece prevalecer neste Vale de Lágrimas.

A História registra infinitos casos de divulgação falaciosa de condutas indignas atribuídas a pessoas que nada fizeram, além do exato cumprimento do dever. Rodrigo Octavio foi uma dessas vítimas. Aceitou o convite formulado pelos governos dos Estados Unidos e do México para servir como Presidente e árbitro num tribunal encarregado de resolver as reclamações de cidadãos americanos contra o México, pelos fatos ocorridos durante os dez anos de revolução.

Aceitou. Foi ao México de trem, que mergulhou no grande túnel que atravessa o largo estuário do Hudson, entre Manhattam e Nova Jersey e que, cinco dias depois, chega no coração do México. Disso resultou um livro que ele escreveu: “Terra da Virgem Índia”.

Instalou-se o Tribunal, com dois juristas – um mexicano e outro americano. Entusiasmado, Rodrigo Octávio aceitou também servir como árbitro para os novos tribunais pactuados entre México e França e México e Alemanha.

Só que, depois disso, veio a julgamento um famoso caso. Cada parte falou durante seis sessões: doze dias sequenciais. Era chamado o processo de Santa Isabel. Um cruel massacre de dezesseis moços americanos que viajavam de trem para retomar a exploração da mina de prata cujos trabalhos se suspenderam por força dos movimentos revolucionários. Cumpria apurar se era um ato de revolução ou de banditismo. Na primeira hipótese, o México seria responsável. Caso contrário, se safaria das responsabilidades.

Rodrigo Octávio concluiu que era crime típico, ao México não cabia qualquer responsabilidade. Essa decisão causou pânico. Ninguém acreditava fosse ele capaz de se pronunciar contra os Estados Unidos. Houve impugnação violenta do juiz americano, protesto do Governo americano junto ao Tribunal e a manifesta má vontade da mídia americana, a culminar com infamante acusação de suborno.

O árbitro sabia que a decisão causaria desagrado, mas estava convicto de sua sinceridade. Esperava que se discutisse duramente a sentença, que ela fosse criticada, atacada e inquinada de erro ou equívoco. Ela por si, se saberia defender. Mas ele não estava preparado para a ousadia de dizerem que ela havia sido comprada.

Começou aquilo que Rodrigo Octavio chama de “rua da amargura”. Ele possuía um prazo de quatro meses para redigir a decisão e viajou para isso, até porque estava enfermo. Um jornalista chamado Nemesio Garcia Naranjo, em artigo no “Excelsior”, do México, em 12.3.1926, noticiava que o árbitro suspendeu a sessão de julgamento e saiu precipitadamente do México. Algo tão inusitado que desperta um cúmulo de dúvidas, desconfianças e temores. A viagem para tratamento de saúde sugeria um ardil para abandonar o campo de batalha e fugir à responsabilidade.

Dias mais tarde, a imprensa mexicana publicou que um juiz que se compromete com dois povos a repartir justiça, não tem direito de adoecer. Está obrigado, não só no leito, mas à beira mesmo da tumba, a dar a cada qual o que é seu...

Mais grave ainda, os jornais do famoso jornalista Hearst publicaram que o Tesouro mexicano havia entregue a Rodrigo Octávio, mercê dos bons serviços prestados ao México, a quantia em dinheiro de cem mil dólares. Publicou-se um ato do governo mexicano que se comprovou, posteriormente, ser grosseiramente falso. Mas o desastre fora feito. Amplo noticiário, com repercussão em muitos outros jornais, com a foto de Rodrigo Octávio e fac-simile do ato de doação da quantia.

O árbitro ferido em sua honra recebeu do governo mexicano o desmentido formal da aleivosia e a declaração solene de que era falso o documento veiculado. Hearst não esmoreceu. Noticiou que o governo mexicano não assumiria a própria infâmia e que o dinheiro fora entregue.

O acaso – ou a Providência divina – salvou Rodrigo Octávio. Logo em seguida, surge outro fac-simile, em que o Governo Mexicano dera quantia ainda superior aos cem mil dólares mencionados, a cada um dos três Senadores americanos que haviam votado a favor do México.

Moveu-se então a sensibilidade ianque. Abriu-se inquérito e o Senado americano provou que todos os documentos publicados por Hearst eram falsificados. Fatos como esse ainda acontecem. Os juízes sabem que o descontente com uma decisão não hesita em afirmar que eles haviam sido comprados. E como se desincumbir dessa prova diabólica: provar o que não se fez? O caluniador, não raro, resta impune. Isto já é outra história.

Publicado no Estadão/Blog do Fausto Macedo, em 07 04 2024



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