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REBELIÃO NAS ARCADAS
Acadêmico: José Renato Nalini
A partir de 1828, a provinciana e pacata Piratininga dos jesuítas se transformou em burgo acadêmico. Os alunos do Curso Jurídico deram colorido e ruído à cidade.

Rebelião nas Arcadas

A partir de 1828, a provinciana e pacata Piratininga dos jesuítas se transformou em burgo acadêmico. Os alunos do Curso Jurídico instalado junto ao Convento Franciscano deram colorido e ruído à cidade. Foram eles que selaram a sorte cosmopolita da capital bandeirante. Desde então, os frequentadores das Arcadas passaram a ocupar a cena e a fazer São Paulo fervilhar de entusiasmo, por causas inspiradas pelas ciências do Direito e pelo ideal democrático.

A crônica da São Francisco é prenhe de episódios pitorescos e que marcaram a História do Brasil. Um deles ocorreu em 1871, quando São Paulo se viu sacudida por um considerável movimento acadêmico.

Isso aconteceu porque a Congregação da Faculdade, pela maioria de seus membros, resolveu subordinar os exames - que teriam início a 28 de outubro - o rigoroso regime instituído por um novo decreto publicado dias antes. O texto da reforma só fora conhecido em São Paulo na véspera dos exames, para os quais os alunos haviam se preparado com afinco. Isso porque a “mala” da Corte só chegava a cada quinze dias.

Os estudantes não gostaram desse adiamento em cima da hora. Já estavam prontos a serem avaliados pelo que haviam aprendido naquele ano. Tudo restou desarranjado. As viagens que fariam, o retorno às suas famílias - pois a maioria dos acadêmicos não era paulistana - os planos e projetos abortados. A primeira reação foi invadir as salas anteriormente preparadas para os exames e quebrar tudo dentro delas.

O quintanista Carlos de Carvalho, responsável pela “Imprensa Acadêmica”, foi incumbido por seus colegas de redigir o “Protesto” que seria endereçado à Congregação. Houve convocação de todos os estudantes para ouvir a leitura do documento exatamente às três da tarde de 28 de outubro de 1871, o horário que fora reservado para os exames adiados.

Carlos de Carvalho, em pé, em cima de uma mesa, leu - sob aclamações frenéticas - o “Protesto” que mereceu aprovação geral e foi assinado por todos os presentes. Quando apresentado à Diretoria da Faculdade, estava também publicado no “Correio Paulistano”.

A rebeldia foi considerada muito grave e foram aplicados castigos exemplares. A escola foi fechada. Os exames, indefinidamente adiados. Só muito depois foram remarcados para fevereiro de 1872.

Os líderes desse movimento, os futuros bacharéis Carlos Augusto de Carvalho, Fernando Luiz Osório, Joaquim Augusto Ribeiro da Luz, o lendário Luz das famosas proezas acadêmicas, Antonio Ferreira de Castilho, João José Ferreira Ludovico e Leopoldo Cesar Duque Estrada foram notificados para responder a processo. Foram desde logo previamente apenados, pois considerados cabeças do motim.

Ânimos exaltados, a solidariedade do terceiranista Luiz Bezamant o fez voluntariar-se e requerer igual tratamento dispensado aos seus colegas indiciados. Estes resolveram não se defender, tamanha a injustiça da acusação. Carlos de Carvalho, o primeiro a ser submetido ao ríspido tribunal, ouviu o libelo cuja leitura foi feita pelo lente acusador, Dr. Clemente Falcão Filho e, quando inquirido sobre o que tinha a dizer em sua defesa, respondeu altaneiro: “Confirmo a acusação!”.

A sanção foi a suspensão por dois anos, aplicada a Carlos de Carvalho e ao réu espontâneo, castigado por sua petulância adesão à causa. Os demais foram suspensos por um ano. Depois de um ano, o Imperador indultou todos os estudantes. Mas Carlos de Carvalho e Luiz Bezamant não aceitaram o indulto e só voltaram a São Paulo para se submeterem a exame, após terminado o prazo da condenação.

Gestos como esse eram mais comuns no final do século XIX. Hoje, é muito difícil encontrar exemplos de desprendimento, de renúncia ao comodismo, para mostrar coerência com escolhas axiológicas.

É que o ensino e o aprendizado do direito, nos primeiros tempos, eram ancorados em valores mais cultivados na sociedade, ainda não contaminada pelo consumismo, pelo imediatismo, pelo egoísmo e materialismo que hoje predomina em todas as escalas. O bacharelado, hoje, é um treino processual e procedimental para a beligerância. Alguém sabe qual o lugar da ética e da deontologia em seus currículos?

Episódios como os de Carlos de Carvalho e Luiz Bezamant ficaram na arqueologia da História da Academia de São Paulo.

Publicado no Estadão/Blog do Fausto Macedo, em 15 03 2024



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