Compartilhe
Tamanho da fonte


A INEVITÁVEL CICATRIZ
Acadêmico: Gabriel Chalita
Benditas sejam minhas inevitáveis cicatrizes. E minha decisão de nunca deixar de amar.

A inevitável cicatriz


Eu tenho tantos passados que fica difícil dizer “sim”. Diz minha prima, Cirlene, que é melhor trancar.

Não. Sou uma mulher arejada. Gosto de gostar das pessoas. Sou matriculada na escola das curiosidades. Se o mundo vive nas desatenções, faço o contrário.

Cirlene está enganada, mesmo diante da brutal realidade, não se deve trancar. Casas são trancadas, portas e janelas também e, também, os cofres e até algumas gavetas cujos objetos guardam algumas preciosidades. Pessoas, não. Pessoas nasceram para pessoas. Não se abraça a si mesmo no trancado da solidão. Não se conversa consigo mesmo no trancado do medo do encontro.

Foi Juliano o último que desdisse a minha crença, na verdade. Ele já mentia, há muito, com uma prima minha, cujo nome prefiro trancar. Uma prima do outro lado da família, não do lado de Cirlene. Cirlene é parente por parte da minha mãe que, na vida, só trancou as maldades.

Juliano e ela se deitavam, quando ainda estávamos juntos. Eu até cheguei a desconfiar, mas é difícil acreditar que o outro faça aquilo que eu jamais faria. Fizeram. Fizeram uma ferida enorme em mim. Fizeram na mesma casa em que nos amamos tanto. Voltei antes de uma saída e saí depois do que vi. Eles me viram.

Não sou mulher de escândalos, de arroubos. Vivo as minhas dores nos silêncios dos dias. Dos dias que não estacionam nunca. Passam.
Dei um nome à ferida, traição. Dei um tempo a ela, mais por desejo do que por razão. O tempo é desobediente, é caprichoso.

Cirlene chorou comigo. Era o que lhe cabia em meio à minha revelação. Eu disse a ele que não trancaria nada. Que fosse embora. Que fosse viver os seus desatinos. Ela disse que a história dos dois não levaria a nada. A prima, cujo nome me recuso a dizer, é casada.

Cirlene perguntou se eu iria dizer ao marido. Eu disse que não. Só disse que a ferida se transformaria em uma inevitável cicatriz. E que a inevitável cicatriz seria mais uma a oferecer a mim a lembrança de que sou humana.

Chorei com dignidade com minha prima. Chorei por minha prima e pelo homem que amei. Como eu queria acreditar na conjugação passada do verbo. Eu ainda o amo. Ainda é advérbio de alívios. Vai passar.

Ele tentou escrever uma ficção em minha alma. Disse que havia sido a primeira vez. Que foi um deslize em tempos de carência. Que era eu a mulher da vida dele. Eu disse nada. Só pedi que, levemente, levasse suas coisas. A casa era minha. Eu a havia comprado. Ele disse que eu não deveria ser rancorosa. Que o rancor era prenúncio de envelhecimentos.

Olhei os seus ditos e o rosto de onde os ditos nasciam e estranhei a ausência do rubor. Teria preferido que tivesse dito a verdade. Que falasse de uma paixão que surgiu. Que dissesse o tempo em que estavam vivendo o escondido.

Juliano não foi o primeiro a me trair. Sou eu a errada por escolher errado? Sou eu a errada por persistir escolhendo? Não, definitivamente não sou das trancas. Sou das pausas. Sou das que vivem os lutos nos silêncios. Sou das que se rasgam e se costuram. Das que caem e se levantam. Das que ouvem mentiras e prosseguem acreditando na paz que só a verdade entrega.

Sou uma mulher frágil e forte, medrosa e destemida, amorosa e amorosa. Dizer que não senti ódio dos dois é mentira. Senti e deixei de sentir. E se falo sobre o assunto é como registro, apenas, da inevitável cicatriz. É por isso que dou nome à minha dor. É por isso que, ao dar nome à minha dor, eu me reservo o direito de, no tempo certo, pedir que ela se retire. É por isso que, depois de sua retirada, eu prossigo na boa teimosia de viver.

Eu tenho tantos passados que fica difícil dizer “sim”. Pois bem, não nasci para o fácil. Então, eu olho a vida aberta e digo “venha”. Vamos prosseguir provando e, se preciso, reprovando. Os dias sucedem os dias. E assim é com os amores. Há quem tenha encontrado um único amor para uma vida inteira, parabéns! Comigo, não foi assim.

Benditas sejam minhas inevitáveis cicatrizes. E minha decisão de nunca deixar de amar.

Publicado no jornal O Dia, em 17 03 2024



voltar




 
Largo do Arouche, 312 / 324 • CEP: 01219-000 • São Paulo • SP • Brasil • Telefone: 11 3331-7222 / 3331-7401 / 3331-1562.
Imagem de um cadeado  Política de privacidade.