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REPENSAR O ESPAÇO PÚBLICO
Acadêmico: José Renato Nalini
Se a Medicina consegue fazer cirurgias à distância, confiáveis e seguras, por que o sistema de Justiça não pode também seguir esse exemplo?

Repensar o espaço público

As tecnologias da 4.ª revolução industrial transformaram o mundo e a forma de pensar. Trouxeram rapidez a serviços e prestações, fulminaram rotinas, simplificaram procedimentos. A comunicação eletrônica provou não existir mais distância. O contato imediato, visual e sonoro, entre pessoas em qualquer parte do mundo reduziu deslocamentos e aproximou seres que talvez nunca se encontrariam.

Pense-se o que eram os bancos e suas filas. A ida periódica ao gerente. Cheques e extratos desapareceram. Desnecessário comparecer às agências. Elas foram fechadas e as instituições financeiras se valeram da chance para explorar negócios novos. Um deles, a edificação de prédios de apartamentos.

O período de enfrentamento da covid-19 comprovou a capacidade de resiliência de inúmeros setores. Mas a educação à luz dos avanços científicos deve continuar e se intensificar em todos os níveis. Estudantes hoje têm maturidade para saber que todo o conteúdo das aulas está disponível e nunca esteve tão acessível a quem tem a curiosidade de percorrer o universo web. Isso é constatável em alguns espaços. Aulas na pós-graduação, cuja abstenção era muito acima do tolerável, passaram a contar com alunado assíduo e pontual. Os horários foram observados. A participação em sala virtual se valeu de metodologias do ensino/aprendizado ativo, o rendimento foi superior ao verificado nas aulas presenciais.

Mas o exemplo mais eloquente foi o do sistema de Justiça. Felizmente, o Judiciário estava preparado e havia se equipado para oferecer audiências e sessões remotas, com segurança e eficiência. Testemunhas que dificilmente compareceriam a fóruns, vítimas com dificuldade de locomoção, todos esses agentes imprescindíveis à realização do mais adequado justo concreto foram facilmente localizados e participaram dos encontros online.

Disso resultou que a produtividade aumentou. Com vantagens para a prestação jurisdicional. Mais do que a cena teatral da antiga Justiça tradicional, o que interessa para a parte é merecer uma solução. Na verdade, tudo o que se puder abreviar em termos de duração do calvário judicialiforme é benéfico. Uma República em que o apego ao princípio do duplo grau de jurisdição converteu a estrutura da Justiça num longo e imprevisível percurso até o quarto grau é, por si só, a imposição de um sacrifício a quem dela necessita.

Lamentavelmente, não se valeu o Judiciário da valiosa oportunidade de assumir o desafio de uma Justiça prioritariamente virtual, reservada a presencialidade para reduzido número de processos. Imperou o anacronismo da síndrome dos olhos nos olhos, com menosprezo às claras vantagens da consecução do justo mediante adoção de tudo o que as tecnologias oferecem a este imprescindível serviço público.

Talvez seja hora de repensar a estrutura do sistema de Justiça. Adequá-lo àquilo que a iniciativa privada, que não tem por si o erário, assimilou e gerou eficiência. O arsenal tecnológico disponível tem potencialidades inexploradas. É urgente fazer com que a academia e os cérebros talentosos que há no Poder Judiciário, no Ministério Público, na Defensoria, nas Procuradorias, nas delegações extrajudiciais e na advocacia reflitam sobre o que é possível fazer para que o sistema de Justiça ganhe maior agilidade, singeleza, celeridade e eficiência.

A pandemia mostrou que talvez não seja mais necessário dispor de tantos espaços reservados a abrigar quadros profissionais que puderam se desincumbir de suas atribuições sem se deslocar até o local de trabalho. Deixar à disposição destes servidores (qualificados, diferenciados e essenciais) espaços ociosos talvez não seja o ideal numa nação que ainda tem milhões de famintos, outros milhões sem teto, sem trabalho digno, sem saúde e educação de qualidade.

Edifícios em áreas estratégicas, no centro das cidades, exatamente o local com a mais adequada infraestrutura para mobilidade e oferta de outros benefícios, deveriam servir preferencialmente à moradia. Até para requalificar os centros, áreas que já foram nobres, mas se viram abandonadas e deterioradas, um espaço vazio, lúgubre e melancólico quando o sol se esconde.

Alguém já se propôs a relacionar o custo de alugueres com edifícios que, na pandemia, permaneceram praticamente inúteis? Cotejar o custo/benefício é obrigação de qualquer agente público, de qualquer dos poderes ou das entidades da complexa Federação tupiniquim.

Também é o caso de reexaminar o critério de criação de comarcas e cargos e da necessidade de construção ou aluguel de mais prédios para fóruns, para repartições das demais instituições que fazem parte da Justiça. Se a Medicina consegue fazer cirurgias à distância, confiáveis e seguras, por que a solução de controvérsias também não pode seguir esse exemplo?

O Brasil deixou de ter sua monarquia em 1889, mas a cultura majestática permaneceu. Ainda existe, em certas consciências, a sedução dos palácios, a construção de grandes equipamentos, como se as necessidades da população se resumissem à existência de soberbas construções, erguidas com o dinheiro do contribuinte. É preciso estabelecer uma hierarquia das reais necessidades do povo e elaborar orçamentos compatíveis com o enfrentamento delas, muito distante do que satisfazer volúpias de grandiosidade e de aparato.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que começa a se preocupar com o recrutamento de magistrados e com a singeleza da linguagem jurídica, mereceria o respaldo de grande parte da população, também repensasse os critérios de crescimento quantitativo das estruturas funcionais e de multiplicação de sedes físicas. O virtual ganhou o mundo financeiro. Por que reprimi-lo no mundo da Justiça?

Publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 29 02 2024



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