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O TROCO DE FREI SAMPAIO
Acadêmico: José Renato Nalini
O mal prolifera. Injúrias, calúnias ou difamações ganham roupagem nova, com o irreversível avanço da internet.

O troco de Frei Sampaio

Embora hoje inteiramente esquecido, o franciscano Frei Francisco Santa Thereza de Jesus Sampaio, ou simplesmente Frei Sampaio, foi alguém de enorme relevância para a Independência do Brasil. Depois de sustentar doutrinária e politicamente Dom Pedro, este prometeu a ele um bispado. Pois a Igreja Católica era a religião oficial do Império. Mas a Marquesa de Santos preferiu outro sacerdote, amigo seu.

Frei Sampaio afastou-se de Dom Pedro e este, arrependido, quis reatar. Até que Frei Sampaio capitulasse. Aí foi a vez dos que não perdoam e só encontram falhas nos outros. Começaram a acusá-lo de amigo dos poderosos e, durante um sermão na quaresma, quando Frei Sampaio falava sobre a penitência, alguns impetuosos jovens o vaiaram.

Foi quando Frei Sampaio, em plena oração, do alto do púlpito, dirigiu-se à assembleia de fieis:

“E vós, indignos pecadores! Filhos do mal, que reincidis a todas as horas, a todos os instantes, na culpa e no pecado, que vindes afrontar, com vosso impudor e cinismo, os altares do Cordeiro Imaculado. Que ousais interromper a apalavra sagrada de seus ministros com os vossos motejos e calúnias, sem espírito nem para Deus, nem para as vossas almas, nem para a religião de vossos pais, vós, misérrimos frutos do pecado original! O que seria de vós, se neste instante, o Ministro do Senhor, com o poder de Sua graça e de Sua justiça, estendesse seus braços e vos abatesse, instantaneamente, nos horrores do sepulcro?

Prosternai-vos, geração bastarda, raça de indomáveis pecadores; batei com a fronte orgulhosa e terrena de encontro ao pó de onde saístes, para onde havereis de voltar no vosso máximo dia, nada mais sois do que pó. Juntai essas mãos, que todos os dias obram iniquidades contra o Senhor, e rogai comigo, cheios de arrependimento, de dor e de contrição: Senhor! Senhor! Perdoai-nos pelas Vossas dores, pela Vossa paixão e morte, pela Vossa infinita misericórdia!”.

Nara a crônica da época, assente sobre o relato de quem se fazia presente, que no momento em que o orador exclamou – “Prosternai-vos!”, o gesto foi tão perfeito, tão grande e impressionante a importância da frase, tão imperiosa a expressão da fisionomia, tão potente o olhar, que, a um tempo, tudo quanto se achava no templo se ajoelhou. Ouviu-se um só baque, um só ruído.

Esta oração não precisa de muita reflexão para que nela se encontre a resposta do franciscano aos seus detratores. Conhecia ele as criações da maledicência e se aproveitou do momento, que tão apropriado se mostrava, para repelir, e brilhantemente o fez, a fragorosa onda de difamadoras invencionices que contra ele haviam propalado.

Nada obstante, alguns pretensos historiadores, com lamentável inconsciência, continuam a ferir – e essa é a única coisa que sabem ferir – a mesma tecla, sem contudo a amparar, com um único fato a constituir uma única prova que alicerce desairosa suposição.

Vários escritores transcrevem – e nessas transcrições se contém sempre o estudo sobre Frei Sampaio, trechos de discursos dele, para atestar os inegáveis e enormes méritos de orador. Depois reproduzem a atitude dos moços mal-educados e aludem à pretensa flexibilidade do caráter do ofendido.

Sem prova alguma. E isso continua a acontecer no Brasil de nossos dias. Difamai, difamai, alguma coisa sempre restará! É a famosa penitência de São Felipe Nery que deve ser lembrada. Para uma mulher maledicente, impôs o sacerdote como condição para o seu perdão ao confessionário, espalhasse pela cidade as penas de uma galinha. Quando ela voltou, pediu que recolhesse todas as penas. Assim é a palavra que difama. Ela ganha o mundo. E hoje, com as redes sociais, pereniza-se e é utilizada a cada momento, para afligir ainda mais o já aflito.

Mas a praxe brasileira tem sido a de ocultar os méritos e de preservar os deméritos. Estes, que se originam do nada ou do fel da maldade, ganham aderência fácil e se tornam fatos incontestes. Se de 1822 a 1830 as paixões da politicalha foram das mais virulentas, na segunda década do Século XXI elas não são diferentes. Só que ganharam em ira, ódio, ignorância e fanatismo. Ódios fermentados e medrando na treva, desvarios do orgulho, ambições que se fortalecem e se enrijam pela violência, destroem reputações. Quem as recompõe ou restaura? Ninguém.

O mal prolifera. Injúrias, calúnias ou difamações ganham roupagem nova, com o irreversível avanço da internet. E já não existem Freis Sampaios, para refrear o tsunami de crueldade que habita imensa legião de corações humanos. Já não há quem dê troco ou resposta aos difamadores, os assassinos da honra alheia. Será que são felizes e continuarão a sê-lo, nesta caminhada que é curta e frágil peregrinação pela Terra?

Publicado no Estadão/Blog do Fausto Macedo, em 17 02 2024



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