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QUANDO NÃO HAVIA TIKTOK
Acadêmico: José Renato Nalini
Existia uma arte de “contar histórias”. Era comum, à noite, a mãe ler alguns contos ou inventar outros.

Quando não havia TikTok

Crianças e até alguns jovens de hoje podem não acreditar, mas até há pouco, não existia internet. E as pessoas viviam bem. Não havia TV antes da década de cinquenta do século passado. E vivia-se bem.

Existia uma arte de “contar histórias”. Era comum, à noite, a mãe ler alguns contos ou inventar outros. As crianças até preferiam estes, pois a criatividade fazia com que a versão se alterasse a cada vez.

Narrativas ingênuas, em geral contendo mensagem moralizante. Nas famílias de posses, havia babás, pajens ou amas-secas que se encarregavam das crianças. Elas tinham uma lógica e uma psicologia toda própria.

Um exemplo de “causo” inocente: chega uma visita inesperada à casa de uma família que possuía quintal com criação. Diz o galo: “Tem visita em casa”, voz forte e segura, altaneira. A galinha reflete: “Qual de nós irá para a panela?”. E o frango, consciente de sua carne macia, entre choroso e humilde: “Pobre de mim!”.

Outra, já um pouco mais maliciosa: Um padre tinha um menino a seu serviço e lhe ensinava também. Usava a palmatória como divertimento. Dizia ao menino: “Como me chamo?”. E o menino respondia: “Padre”. “Não, sou o papa-santo” e batia nas mãos do garoto.

Vendo o gato, indagava: “E esse bicho?”. “Gato”, retrucava o menino. “Não, é papa-ratos!”. Mais palmatória. Mostrava o fogo: “Isto é clemência”. E a água: “Abundância”. Onde moramos: “Numa casa”, dizia o menino. “Que disparate! Isso é traficância!”.

A empregada do padre, ele apelidara “Folgazona”. Seus braços finos, ele chamava “gravetos”.

O menino, farto dos maus-tratos, de tanta palmatória, vê um dia o padre abraçando a empregada. Amarra um facho ao rabo do gato e o acende. O bichano sai a miar, desesperado. O menino grita: “Saia, seu papa-santo, dos gravetos da folgazona, que lá vai o papa-ratos com a clemência ao rabo. Acuda, com abundância, que lá se vai a traficância”.

Eram relatos para entreter a criançada, assim como aquilo que desapareceu, junto com a contação de estórias: os exercícios de oralidade como treino à capacidade de reproduzir textos aparentemente difíceis, como a historinha que segue:

No alto daquele morro há um ninho de mafagava, com sete mafagafinhos, quando a mafagafa gafa, gafam os sete mafagafinhos. Ou então aquilo que se costumava até declamar, como espécie de cantoria:

Era uma velha que tinha nove filhas que não sabiam fazer biscoito; deu o tangolomango numa delas, das nove ficaram oito. Dessas oito, meu bem, que ficaram, uma comeu omelete; deu o tangolomango nessa uma, das oito ficaram sete. Dessas sete, meu bem, que ficaram, uma era devota das Mercês; deu o tangolomango nessa uma, das sete ficaram seis. Dessas seis, meu bem, que ficaram, uma ficou no telhado de zinco; deu o tangolomango nessa uma, das seis ficaram cinco. Dessas cinco, meu bem, que ficaram, uma foi para o teatro; deu o tangolomango nessa uma, das cinco ficaram quatro. Dessas quatro, meu bem, que ficaram, uma casou com o inglês; deu o tangolomango nessa uma, das quatro ficaram três. Dessas três, meu bem, que ficaram, uma foi correr as ruas; deu o tangolomango nessa uma, das três ficaram duas. Dessas duas, meu bem, que ficaram, uma foi para Inhaúma; deu o tangolomango nessa uma, das duas ficou só uma.

Brincadeiras assim, como “o rato roeu a roupa do rei de Roma”, ou o conhecidíssimo “hoje é domingo, pede cachimbo...”, as crianças de hoje sequer têm ideia. Como aquela brincadeira que começava com “Quando Fernando Sete usava paletó” e depois a mesma frase se repetia com utilização exclusiva de cada uma das vogais: “Quanda a Farnanda Sata asava palata”, até chegar ao “Quandu Furnundu Sutu usuvu pulutu”. Além de não saber, elas não querem tomar conhecimento dessa antiqualha arqueológica. Estão todas com seus celulares, ávidas a buscar joguinhos ou a caçoar das “videocassetadas” que ganharam força e intensidade.

Talvez isso explique um pouco a incapacidade de formular ideias e de exprimi-las. O uso irritante do “tipo”, verbete utilizado quando não se dispõe de vocabulário, pois prepondera a onomatopeia e a linguagem que se resume a sinais de exclamação ou de interrogação.

Sinal dos tempos? Alguma saudade da época em que ouvir histórias era divertido e, mais do que isso, propiciava uma aproximação afetiva que hoje, lamentavelmente, rareia também?

Publicado no Estadão/Blog do Fausto Macedo, em 12 01 2024



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