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O ENCOLHIMENTO DA VIDA
Acadêmico: Gabriel Chalita
A vida de Ivete encolheu. Sei disso, porque sei sentir. Era sobre um outro homem que ela dizia, quando eu amaciava as conversas falando ternuras. Não sobre mim. Não sobre nós.

O encolhimento da vida

A vida de Ivete encolheu. Sei disso, porque sei sentir.

Era sobre um outro homem que ela dizia, quando eu amaciava as conversas falando ternuras. Não sobre mim. Não sobre nós. Tenho medo de que os sentimentos não sejam os mesmos. Quis tanto que terminassem.

Ivete e Gustavo estavam juntos há alguns anos. Antes dele, foi Humberto. No intervalo, eu quase disse. Eu sempre amei Ivete. Sempre.

Estive com outras mulheres, naturalmente. Gosto do jogo da sedução e das teias que vão se formando em arranjos que estacionam o mundo. Os amantes se despem de outros assuntos e são. Um e o outro.

Nunca fui inteiro com uma mulher, desde que conheci Ivete. Em uma noite, nos beijamos. Faz tanto tempo. E ela emudeceu a história depois de um texto explicando a amizade. Eu senti a quentura dos seus lábios. Eu senti, no meu corpo de homem, o volume dos seus desejos. Um beijo apenas e o gozo do universo inteiro em mim.

Arrumei uma namorada para fazer ciúmes. Sei que não foi certo. Pessoas não são utensílios de depositórios de frustrações. Mas eu tentei. Decidi que a melhor forma de acompanhar, à porta de saída de mim, uma paixão era convidar uma outra para que entrasse. Ivete é mais do que uma paixão. É um amor desenhando futuros em mim. São quase dez anos, desde a primeira vez.

Uma mulher cega estava tentando atravessar a rua. Eu fiz presença para ajudar, se necessário. Ela, também. A mulher aceitou. Os dois caminharam. Do outro lado, conversamos.

É comigo que ela gosta de conversar. E é para mim, hoje, que ela chora por Gustavo. Choro que dói em mim. Dói sua dor. Dói minha dor. Não seria eu o homem a explicar o sentido do amor? Eu que amo há tanto? Não seria eu o descanso para os desencontros? Como dizer? Não. O momento diz que eu aguarde.

Ela encosta em mim o choro, e eu oro para que o relógio do mundo descanse e que descanse ela, em mim, sem pausas. Acaricio os cabelos com respeito. Ajeito algumas palavras para falar que passa. Passam casais de mãos dadas e eu digo que o amor mora mais perto do que se imagina. Ela agradece os meus cuidados. Os nossos lábios se aproximam. Ela beija o meu rosto e volta a encostar em mim seu silêncio.

Às vezes, penso que é teimosia. O querer o que falta. O não agarrar o que se tem. Eu deveria desligar um tempo nossa amizade para fazer com que ela sinta falta. E se não sentir? Se não sentir, eu sentirei com o tempo outros sentimentos. É assim que é.

As flores das alamedas dos meus caminhos não se resumem a uma.
É o que tento poeticamente me dizer. Digo e não ouço. Ouço o encolhimento de Ivete em meus braços grandes de esperança. Ensaio um convite, apenas. Ensaio e desisto. Não é o dia.

Hoje é o dia de luto. É preciso respeitar. "Chore, Ivete, chore que eu estou aqui, estou aqui para você, foi para isso que eu nasci". Ela ri. E diz que sou bobo, que vivo dessas brincadeiras. E solta, "Quem dera que alguém me amasse assim". E eu concluo não concluir nada.

Ainda não consigo dizer.
Ainda não consigo partir.

Publicado no site do jornal O Dia, em 10 12 2023



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