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INJUSTIÇA TAMBÉM MATA
Acadêmico: José Renato Nalini
A experiência que os humanos têm, não é com a justiça, mas com o contrário dela.

Injustiça também mata

A experiência que os humanos têm, não é com a justiça, mas com o contrário dela. É com a injustiça que a maior parte dos racionais tem contato enquanto peregrinam por este vale de lágrimas.

Há dias mencionei a vida admirável de Frei Sampaio, que abasteceu o Príncipe Regente de notáveis lições sobre liberdade e autonomia das nações, tornando-se peça relevante para o gesto de D. Pedro I em 7 de setembro de 1822.

O Príncipe reconhecia tal participação. Tanto que prometeu a Frei Sampaio torna-lo bispo. Era o Imperador quem nomeava os bispos, já que a Igreja Católica era a religião oficial do Império.

Mas a Marquesa de Santos preferia outro sacerdote. E Pedro I curvou-se à sua vontade.

Arrependido, Pedro I cercou Frei Sampaio de atenções, até – de certa forma – obter seu perdão. Mas a magnanimidade do franciscano conquistou a ira de quem achava que ele deveria manter-se afastado do Imperador. Uma campanha de destruição de seu renome se tornou forte. Chegou a ser apupado durante uma prédica.

Desiludido, perdeu a vontade de continuar a pregar. A desilusão viera dos pretensos católicos e também dos pretensos adeptos da liberdade. Quando a desilusão golpeia a vontade, ela também aniquila a força de agir. Faz nascer o esmorecimento e a inércia.

Descrente nos homens, percebendo toda a inutilidade de seu esforço, recolheu-se – modesta e humildemente – à sombra melancólica e consoladora do claustro. Assim aguardou os derradeiros instantes de frade.

Desse claustro, nem o pedido dos amigos o arredava. Durante quinze anos, afastado do mundo exterior, do jornalismo, do púlpito que lhe fora um carro de triunfo, permaneceu sem contato com os que antigamente o aplaudiam.

Faleceu em 13 de setembro de 1830. Embora recluso, sua morte produziu mágoas profundas, talvez impregnadas de remorso dos que haviam sido seus algozes.

Os grandes vultos da Capital Imperial se reuniram junto a seu ataúde. Domingos José Gonçalves de Magalhães, depois Visconde de Araguaia, compôs uma elegia da qual alguns versos se salvaram:

“O grande pecado de haver sonhado. Já retumbam os bronzes sonorosos/Que nas torres do templo suspendidos/Morreu...Morreu...Ai dizem os chorosos/ Que escuto? Já morreu...Já não existe/ Sampaio, o orador! Morreu Sampaio/ e quem a tão cruel golpe resiste? / Jamais aos olhos meus, lágrimas falham.../ Em pranto a minha musa há pouco esteve;/ Já de novo meus olhos prantos espalham/ Aquele que subiu da glória à altura/ Com a força da eloquência inanimado/ Hoje vai-se ocultar na sepultura/ Ainda ontem o vi no púlpito elevado/ Com voz suave e tom harmonioso/ De Deus cantando o nome sublimado/ Ainda ontem nos pintou, triste e choroso/ A dor da Beatíssima Maria/ Ao ver morto Seu filho, e Deus piedoso/ Ainda ontem: Sumo Deus! (assim dizia) / Eu sou feito de pó, de vapores/ Breve me cobrirá a terra fria/ Profeta foi... Já hoje nos horrores/ Da negra sepultura em paz descansa/ O mestre, o exemplar dos oradores/ Filósofo ele foi. Ah! Quem pudera/ Com grave acento, ao som da triste lira/ Mostrar à Pátria e ao mundo o quanto ele era/ Por mais que a minha destra as cordas fira/ Por mais que o peito meu convide ao canto/ Não posso alcançar... Ai! Só suspira/ Envolto o coração em negro manto”.

Quando o Visconde de Araguaia terminou de declamar seu poema fúnebre, Mont’Alverne avizinhou-se dele e disse: “Menino, em outro tempo, eu vos convidaria a vir nesta comunidade tomar o lugar que fica vago. Hoje, porém, melhor destino espera o talento. Mundo por mundo, melhor é o grande para quem tão moço sabe chorar e fazer chorar por um frade!”.

Para culminar, alguns de seus admiradores resolveram guardar-lhe os ossos numa urna artística. O famoso marceneiro Adriano foi encarregado de confeccioná-la. Os ossos foram guardados na peça entalhada. Mas ninguém veio buscá-la e, menos ainda, pagar pelo trabalho do artífice. Eis senão quando, Adriano vendeu a urna. Não se sabe a quem. Com isso, o fulgurante orador de seu tempo, Frei Sampaio, o patriota que edificou uma época, não tem ao menos a cova rasa, onde possa morar o culto de uma saudade. Nunca a utópica gratidão de uma geração que, por otimista presunção, melhor soubesse vir a premiar os descortinos de uma alta inteligência e os anseios de um visionário, tudo oculto dentro da alma humilde de um pobre frade.

Mais uma injustiça a quem por ela já fora tão arduamente perseguido em vida.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão, em 17 11 2023



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