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O RETRATO DO RETRATISTA
Acadêmico: Gabriel Chalita
O retrato do retratista que eu faço era o de homem que tinha a paciência de buscar em nós a nossa melhor imagem.

O retrato do retratista

Já não são como antigamente as casas dos retratistas. Nem os retratos. Retratos dos ontens ficam guardados no compartimento sagrado que responde pelo nome de memória. 

Era uma casa simples ao lado de tantas outras. E uma placa na porta explicando a profissão. Era Geraldo o seu nome, o mesmo do pai, o mesmo do avô. Quando eu era criança, pai e avô já dormiam o dormir da eternidade. 

Geraldo era solitário. Sei nada de sua vida. Sei dos mistérios que eu imaginava. O lugar em que eu sentava para a foto. O seu arrumar da minha postura. O pano preto ao fundo. A máquina grande. O barulho da luz melhorando a imagem. O silêncio depois. A revelação. A foto.

Um dia, eu estava com meu pai sentado aguardando. Demorei tempos para entender a importância, o significado do aguardar. Fazimentos desmesurados nos embrulham de ansiedades, de corridas sem propósito, de incompreensões dos instantes. Comíamos pipoca na praça, enquanto minha mãe arrumava o cabelo no salão da Mariza. Na cidade pequena, havia duas cabeleireiras. Uma mais central, perto da Igreja matriz, e outra no bairro alto. Estávamos perto da Igreja, ao lado de onde também morava o retratista.

Então, ele veio caminhando, vagaroso. Demorei tempos para valorizar o vagar, a ausência das pressas, o milagroso instante que aprecia ser apreciado. Ele cumprimentou a mim e ao meu pai. E prosseguiu em direção à venda do Anastácio. Todos nós comprávamos lá. Ele anotava em um caderno as retiradas e os pagamentos que deveriam ser feitos no início do mês. 

Eu gostava de imaginar o que as pessoas imaginavam e gostava de espichar a minha imaginação para o que faziam quando tinham que fazer.

"Pai, quem tira o retrato do retratista?"

Meu pai sorriu carinhoso e maneou a cabeça querendo entender por que eu estava matriculado na escola das perguntas. Hoje, agradeço o entendimento do valor do perguntar, do convívio com as dúvidas, da curiosidade que toda criança tem e que o crescimento pode fazer decrescer. Meu pai quis saber para qual ocasião o retratista precisaria do próprio retrato. Fiquei em silêncio. Eu havia ido para fazer a carteirinha do único clube da cidade, foto pequena, oportunidade grande de nadar na piscina que era vigiada por dona Ilza, uma mulher poderosíssima, porque decidia se estávamos prontos ou não para mudar de piscina. E sabia de cor as nossas idades, a ponto de ficar na porta do salão, nos carnavais, separando os de idade certa e os de idade a esperar o tempo certo para a autorizada folia. 

Eu disse que ele poderia precisar fazer algum documento, meu pai aceitou a resposta e elogiou minha preocupação. Animado com o aceite dos meus ditos, fui além, e antes, quando ele precisou. Eu mesmo respondi. Tinha o pai. Eu mesmo prossegui olhando nos olhos bons do meu pai.

"Pai, eu não quero que você morra."

O abraço daquele dia da espera da arrumação do cabelo da minha mãe, naquela praça, no tempo da vagarosidade do tempo, ainda mora em mim. E a resposta, também:

"Filho, há coisas que não decidimos."

Era carinhoso meu pai. Mãos grandes, mãos talhadas para o acariciar. Mãos dispostas a caminhar junto. 

Na volta do retratista com as coisas da venda, meu pai falou com ele do meu carinho por seu ofício. Eu tive receio que ele fizesse a pergunta de quem tira o seu retrato. Meu pai não era das inconveniências. Só dizia o que enternecia. 

É a lembrança que tenho. Morreram todos. Fotografias acumuladas de álbuns que gosto de visitar. Mesmo em dias tristes. Mesmo em dias apressados. Eu acalmo o dia retirando o pó dos passados e enxergando o que já vivi.

Vez em quando, é bom pensarmos no filme da nossa vida. Outras, vale parar nas fotografias. Instantes que foram desenhando a imagem que temos hoje. Talvez tenha mais passado que  futuro, nesses tempos que conto.

Outra frase que ouvi tantas vezes de meu pai nas tantas perguntas que eu fazia:

"Nem tudo sabemos, meu filho, nem tudo sabemos."

O retrato do retratista que eu faço era o de homem que tinha a paciência de buscar em nós a nossa melhor imagem. É o que tento fazer, mesmo depois de tantos negativos. Há uma imagem, muitas vezes apagada, de uma vida que merece ser fotografada na posição certa. E é por isso que Geraldo acendia aquela luz. Acender luzes para melhorar as imagens deveria ser a profissão de qualquer profissão.

Já não são como antigamente as casas dos retratistas.

Publicado no site do jornal O Dia, em 12 11 2023



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