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O TEMPO DA COMPREENSÃO
Acadêmico: Gabriel Chalita
Demorei algum tempo para ver nascer o tempo da compreensão. Então, me vesti de vida e consegui caminhar nas calçadas sem o medo dos encontros.

O tempo da compreensão
(Gabriel Chalita)

Faz não muito tempo que um amor fechou as portas e abriu vida com outro.

Faz não muito tempo que chorei a rejeição, a troca, a solidão, o abraço sem abraço, as palavras emudecidas. Era uma dor que doía eternidades, tempo do abandono.

Ouvi vozes acalmadoras, vozes explicadoras do tempo. Do tempo da espera. Do tempo em que a noite parece invadir o dia e demitir a luz.

A escuridão em mim foi se acalmando no tempo dos alívios. Antes, no tempo da solidão, era espera errada, história inventada de um amor perfeito. Eu olhava para a porta e chorava a fechadura sem movimento. As utopias de uma volta arrependida.

Demorei algum tempo para ver nascer o tempo da compreensão. Então, me vesti de vida e consegui caminhar nas calçadas sem o medo dos encontros.

Em um dia, vi os dois. E os dois me viram. Éramos próximos nós todos. Um já era do outro, quando imaginava ser apenas meu. Soube depois. Sofri as mentiras, quando decidia se haveria em mim o tempo do perdão, se a porta se abrisse e as desculpas quisessem entrar.

A porta nunca se abriu, não para a volta. Na volta da mesma cidade em que morávamos todos, vi os dois. Não se constrangeram comigo. Era como se eu nunca fosse. A boa notícia, entretanto, era que o tempo do desprezo já não mais fazia noite em mim. Vi os dois. Mais gordos do que no meu tempo. Gordos de gestos exagerados. Gordos de arrogâncias que eu não via, quando éramos.

No restaurante, os dois brigaram. Disseram indelicadezas ao garçom. Reclamaram de tudo. Vozes em tons descuidados. Meu Deus, como os dois se pareciam!

Uma enciclopédia de dúvidas fez incômodos em mim. Eu sempre disse da bondade, da perfeição, do cuidado gentil do meu amor que partiu. Eu menti, então? Menti para mim mesmo? Eu menti ou o amor que deixou de amar é que mudou? Eu menti ou era de disfarce que ele vivia, quando vivia para mim?

Na mesa comigo, uma amiga bem mais velha falava do marido e do seu tempo do esquecimento. E dela mesma. Do tempo das despedidas. E dos desperdícios do tempo gasto no estar ou no pensar em quem não está ou não pensa em nós.

Dispensei a atenção aos dois que, em tempos não muito distantes, me causaram estragos. E um alívio nos fez companhia, enquanto falávamos e comíamos o tempo da amizade. Agradeci ao garçom o serviço bem feito. Agradeci ao cozinheiro o preparo. Agradeci à minha amiga o compartilhamento dos medos da finitude. O fim é o que explica a estrada e é o que despede os passos já dados.

Ver as deselegâncias ajudou a ver. Fazia calor e eu fui caminhando tranquilo pelas calçadas, testemunhas de tantos passos, de tantas histórias.

Um perfume de rosas de uma casa simples me fez parar. O tempo da compreensão nos presenteia com essas delicadezas que o tempo das ausências desperdiça. Uma árvore forte me fez imaginar a força da permanência nos tempos que mudam. O tempo da compreensão é o tempo do amor. Ou dos amores. Ou dos florescimentos. E é, também, o tempo das podas. Da coragem necessária para deixar o que nunca nos pertenceu.

Publicado no site do jornal O Dia, em 05 11 2023




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