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A CARTA DE MINHA AVÓ
Acadêmico: Gabriel Chalita
Estude as teorias e os sentimentos. E escolha a profissão que você quiser. E, na profissão que você escolher, seja bom. Apenas isso.

A carta de minha avó

Eu balançava a tristeza na rede, enquanto aguardava a carta. O dia ainda distava do fim. Katia Cristina veio andando com andar calmo. Aproximou-se de mim vestida de silêncios. Os seus olhos diziam os seus sentimentos. Estava triste como eu.

A morte não nos surpreende, evidentemente. Sabemos que não temos o poder de eternizar quem amamos. A não ser na memória. A não ser nos esconderijos que nos habitam e que nos ligam pelas linhas sagradas que unem o de onde viemos para o onde vamos. A morte não nos surpreende, mas não nos traz remédios aliviadores de saudade. 

Ela entregou a mim com a cerimônia adequada ao instante. Eu peguei e agradeci. A rede ficava ajeitada entre uma árvore antiga e uma outra mais nova. Ambas árvores. Ambas oferecedoras de frutos e emprestadoras de sombras. E, perto, um banquinho em que, muitas vezes, sentei com minha avó para brincar de não fazer nada. Para brincar de sentir o bom de estarmos juntos.

Confortada no banquinho, a fiel Katia Cristina olhava para mim. Seu olhar era de prontidão. Ela queria ouvir a carta. E eu queria ler em voz alta a carta de minha avó, minha avó, a mulher que exercia o ofício de curar destinos.

"Neto meu, tão amado Miguel, sei que não sou uma devolvedora de felicidades e sei que você deve estar triste.

Senti, há não muito, que os meus dias estavam escapulindo de mim. Os sonhos já me diziam despedidas. Lembranças tantas foram refazendo os meus caminhos. Você sabe que a morte não me oferecia medo.

Caminhante que sou, sempre soube que chegaria o dia de deixar os pés e acreditar no alto. O alto que nos retira tudo o que não é nosso e nos leva para Deus, meu neto. Ninguém me faz acreditar no contrário. Não sei como será, sei que será. Não sei como é Deus, sei como senti Deus na minha passagem por entre tantos que pude amar.


Você tem tanto para sentir, Miguel. Você, de todos, é o que mais se parece comigo. Eu vi, tantas vezes, seus olhinhos perfumados de lágrimas diante da dor do outro. Você queria ir comigo, quando o assunto era cuidar. E não se distraía nem inventava surdez, quando a voz do outro suplicava ajuda Era como um poema ouvir você dizer "Vovó, aquela senhora está chorando, faz alguma coisa", "Vovó, aquele menino está com fome, vamos ajudar", "Vovó, vovó, vovó". Sua voz era uma música celestial em mim.

E quanta coisa boa fizemos juntos! Agora é com você. 

Não deixe o crescer diminuir a sua crença no amor. O amor é o sussurro de Deus dentro de nós, é o sussurro que pede para ser canção no encontro com o outro. O amor é único e é muitos. O amor é um roçar o terreno para os plantios corretos. É um aspergir de água que alivia as sedes. É o outro, Miguel, que nos relembra quem somos. Quando nos esquecemos disso, o outro desaparece. Quando o outro desaparece, nós desaparecemos. 

Você tem ainda quinze anos. Vão te dizer que você deve competir, que você tem que vencer, que você não pode ser fraco. Eu te digo o contrário, aceite suas fraquezas para que as fraquezas do outro não te incomodem. Aprenda a cooperar para que as vitórias sejam acompanhadas. 

Sei que deixo a vocês uma herança. Espero que não se desentendam. As coisas nos devem servir e não o contrário. Quantas guerras no mundo e nas famílias por coisas que ficam o dia que formos.

Deixei um presente especial para Katia Cristina e parte do que eu tinha para manter os lugares de caridade que fizemos.

Estude, meu neto. Nos livros e nas pessoas. Estude as teorias e os sentimentos. E escolha a profissão que você quiser. E, na profissão que você escolher, seja bom. Apenas isso.

Obrigada por ter ido comigo à missa de Santa Teresinha. Foi uma despedida linda. Eu sentia que já estava pronta para viver a vida que prossegue, quando os olhos fecham. Meus olhos estão abertos em você.  Enxugue essas lágrimas para que você possa enxugar muitas lágrimas na caminhada do seu existir. A morte não é o fim.

Estamos juntos, meu amor. 

Sua avó, Maria do Socorro".

Terminei a carta e olhei para Katia Cristina.

" Ela leu para mim, Miguel, queria ouvir também na sua voz."

Eu sorri. Ela prosseguiu. 

"Sei tão pouco, mas o pouco que sei sabe que ela não tem fim. Ninguém tem."

O entardecer daquele dia amanhecia sentimentos lindos em mim. Balancei um pouco mais na rede com os olhos fechados e respondi dentro de mim a sagrada carta da minha avó.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão
Em 15 10 2023



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