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CIÊNCIA A SERVIÇO DO MAL
Acadêmico: José Renato Nalini
A grilagem digital é uma realidade e se constata até 90 do território de povos originários irregularmente apropriado por inescrupulosos aproveitadores.

Ciência a serviço do mal

Sou fervoroso adepto das modernas tecnologias da informação e da comunicação. Mas não desconheço que o bicho-homem, esse animal provido de livre-arbítrio, possa se servir delas para praticar o mal. Para perpetrar crimes. Para atuar causando lesão grave e difusa, como a criminosa apropriação de terras públicas e demarcadas, que agora se faz por via digital.
A questão fundiária é um tema de Estado que não tem sido levado a sério nesta República imersa em má política. Na política profissional que se preocupa com o enriquecimento de seus integrantes e em negligenciar o interesse público. Pois da negligência estatal é que resulta a deficiência do CAR - Cadastro Ambiental Rural, hoje utilizado por grileiros para se apropriar de florestas e territórios indígenas e da União.

Embora criado com saudável intenção, os grileiros se autodeclaram proprietários de vastas áreas, sem respeitar a propriedade da União ou as reservas indígenas. O ordenamento prevê que o CAR é válido, enquanto os órgãos ambientais estaduais não declararem sua ilegalidade. E como o Poder Público é inerte, a fraude corre solta.

Nada menos do que trezentas e vinte e cinco fazendas foram registradas ilegalmente entre 2014 e 2023, sobre cinco áreas indígenas. A reportagem de Vinícius Valfré, neste Estadão de primeiro de abril, infelizmente não era piada. É algo terrível. A grilagem digital é uma realidade e se constata até 90 do território de povos originários irregularmente apropriado por inescrupulosos aproveitadores.

Quem conhece o Brasil e o brasileiro sem dúvida anteciparia o fracasso de uma política que se assenta na boa fé do declarante. Um órgão da mídia, o jornal "O Estado de São Paulo" verificou a flagrante ilegalidade do mecanismo autodeclaratório que se constitui em escancarada grilagem de terras insuscetíveis de apoderamento por parte de particulares.

A sobreposição é nítida e constatável por quem queira enxergar. Só o governo não vê. O Poder Público demora anos para analisar cada registro e, enquanto isso, o grileiro inscreve as áreas virgens no sistema e consegue, instantânea e automaticamente, um documento oficial de posse da terra.

Passam a emitir guias para transporte de gado e solicitam - e obtêm - financiamento estatal para consolidar a posse da terra. Terras de Roraima, Rondônia, Amazonas, Pará e Mato Grosso foram digitalmente apropriadas e, coincidentemente, são as mais devastadas. Os criminosos se valeram do momento em que o governo federal relaxou a renovação das proibições de acesso às terras, restrição que identifica áreas em vias de reconhecimento por decreto.

Em 2012, quando criou o CAR, a promessa era de mapear informações ambientais em todos os imóveis rurais do Brasil. Incumbiu o dono de informar as características hidrográficas, áreas de proteção, florestas, restingas e veredas. Dados que seriam enviados pela internet, por meio dos sites dos órgãos ambientais. Mas quem se valeu da prerrogativa foi a criminalidade organizada. O CAR, hoje, não consegue distinguir o proprietário do invasor.

Tudo consequência da revogação do Código Florestal de 1965, que sucedera o de 1934, mas que desprotege as florestas. Infelizmente, lei que o STF reconheceu compatível com a Constituição Ecológica. O decreto que regulamenta esse pretenso Código Florestal - não existe menção a "florestal" nesse diploma - dispõe que enquanto o CAR não for analisado pelo órgão ambiental, ele é válido para todas as finalidades previstas em lei. A super-organizada criminalidade é que sequestrou o vício da norma.

No Brasil do "vale-tudo", os grileiros negociam suas terras como se fossem legais, pois apresentam o documento do CAR - que eles mesmos declararam. É o mercado da ilegalidade criminosa descarada, em pleno curso e em vultoso prejuízo para toda a nacionalidade.

Falsários se utilizam de laranjas para a declaração no CAR, outros admitem não saber que a área é indígena, há muitos casos escabrosos. O mais emblemático, segundo Vinicius Valfré, é o do Xingu. Mais de 90 dos 142 mil hectares da terra indígena Ituna-Itatá, entre Altamira e Senador José Porfírio, estão nas mãos dos criminosos. No Pará, metade de área indígena foi registrada em nome de um engenheiro. Por sinal, já investigado por manter trabalhadores em situação análoga à de escravos.

O Ministério Público Federal atua, mas o sistema Justiça emperrado e complexo, nem sempre dá respaldo à tutela ministerial. É preciso mais do que isso para impedir que a ciência perpetre tanto mal à nacionalidade e comprometa o futuro do Brasil.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão, 22 de abril de 2023.



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