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OS COMBATES DE DEUS
Acadêmico: José Renato Nalini
Somente sentimos bem aquilo que conhecemos de experiência própria.

Os combates de Deus

Os franceses sempre foram gente chegada à Igreja. O Papa chegou a transferir a Corte Pontifícia para Avignon. Santos como Joana D'Arc, São Luís, Rei de França, Francisco de Sales, Vicente de Paula, Bernardete Soubirous, São Luís Maria de Monfort, mostram a catolicidade gaulesa. Ali apareceu ao menos duas vezes Nossa Senhora: em Lourdes e em Paris, onde até hoje, na rue du Bac, 140, persiste a devoção da Medalha Milagrosa.

Também é a terra dos convertidos nos séculos XIX e XX, embora haja muita heresia e agnosticismo. Tive o privilégio de ir dezenove vezes a Paris e, nas últimas oportunidades, encontrei igrejas vazias ou servindo para outras finalidades.

Mas hoje quero falar de Ernest Renan (1823-1892), que era destinado a ser sacerdote, sonho de sua mãe. Estudou no Seminário menor Saint-Nicolas du Chardonnet, no Seminário de Issy e no Seminário Saint-Sulpice. Depois de tantos anos, começou a perder a fé: a "cada dia se rompia uma nova malha da rede da minha fé". Quando procurava orientação espiritual, ouvia "São tentações contra a fé! Não dê atenção; siga em linha reta para a frente". Deu-lhe para ler um dia a carta que São Francisco de Sales escreveu a Madame de Chantal: "Essas tentações não são mais do que afliões como quaisquer outras. Saiba que tenho visto poucas pessoas irem para a frente sem passar por essa prova. É preciso ter paciência. Não se deve absolutamente responder nem dar mostras de ter ouvido o que o inimigo diz. Que ele bata o quanto queira à porta. Não se deve nem perguntar: "Quem está aí?".

Ao amigo François Liart, que se decidira a tomar as ordens, Renan escreveu: "Disse-te como uma força independente de minha vontade abalava em mim crenças que até agora constituíam o fundamento da minha vida e da minha felicidade. Oh, meu amigo, como são cruéis essas tentações e como eu me sentiria tomado de compaixão se Deus um dia aproximasse de mim algum infeliz que se sentisse trabalhado por elas! Como aqueles que nunca as experimentaram são injustos para com os que as sofrem! A questão é muito simples. Somente sentimos bem aquilo que conhecemos de experiência própria, e este assunto é tão delicado que não creio possa haver no mundo dois homens mais incapazes de se entenderem do que um crente e um que duvida, quando se encontram face a face, por maior que seja a boa fé e mesmo a inteligência de cada um deles. Falam duas línguas que são ininteligíveis se Deus não se interpõe aos dois como intérprete!".

As dúvidas continuaram a atormentá-lo. Continuava acreditando em Jesus: "Consolo-me pensando em Jesus, tão belo, tão puro, tão ideal em seu sofrimento e a quem amarei sempre em qualquer hipótese". Mas resolvera não aceitar o subdiaconato. Sua consciência digladiava com ele próprio, que escrevia: "Oh! Como é precária a liberdade do homem na escolha do seu destino! Uma criança age apenas por impulso e instinto imitativo, e é nesta idade que a fazem jogar sua vida. Um poder superior a enleia através de vínculos indissolúveis; continua a agir silenciosamente, e, antes que ela seja capaz de se conhecer a si mesma, já está comprometida sem saber como".

Nas férias, foi - como era seu costume - para a Bretanha: "Ali tive muito mais tempo para refletir. Os grãos de areia das minhas dúvidas se acumularam e se tornaram um bloco... Deixei de tomar parte nos ofícios religiosos, se bem que conservando o mesmo gosto de antes por suas orações. O cristianismo era, aos meus olhos, maior do que nunca. Mas eu não conservava a crença no sobrenatural senão por força do hábito, por uma espécie de ilusão sobre mim mesmo".

Nessa luta incessante, reconhecia-se cristão. Tanto que posteriormente escreveu a "Vida de Jesus", pois nutria "uma viva afeição pelo ideal evangélico e pelo caráter do fundador do cristianismo. A ideia de que, abandonando a Igreja, continuaria fiel a Jesus apossou-se de mim, e se eu fosse capaz de acreditar em aparições, teria visto Jesus a dizer-me: "Abandonaste-me para poderes ser meu discípulo". Era esta ideia que me amparava e me dava ânimo".

Seu maior remorso era com relação à mãe, que sonhara em ter um filho sacerdote. Só que ele nunca o seria, pois confessava: "Aquilo que deveria fazer minha felicidade é justamente a causa do meu maior pesar. Um dever imperioso me obriga a abafar dentro de mim essas torturas para poupar desgostos aos que me cercam com o seu afeto e que, além disso, seriam incapazes de compreender minha perturbação. Seus desvelos e carinhos me angustiam. Ah! Se essas pessoas soubessem o que se passa no fundo do meu coração!".

Na celebração dos 200 anos de nascimento de Renan, é importante constatar o quão honesto e fiel foi consigo mesmo, recusando-se a ser padre, se lhe faltava a fé. Algo que nos serve de reflexão para quase todas as nossas eleições existenciais.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão
Em 09 04 2023



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