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UMA PRESENÇA AUSENTE
Acadêmico: José Renato Nalini
Incapazes de conceder atenção integral ao outro, consciente ou inconscientemente nos acode uma dívida emocional em relação a todos os que nos cercam.

Uma presença ausente

Acontece a todos os momentos. Em casa, com a família, em reuniões mais amplas e até nas ruas. As pessoas entretidas com seus celulares, não tomam conhecimento da realidade. É comum em restaurantes o casal que, presumivelmente, está namorando, não conversar. Cada qual clicando o seu smartphone.

É a presença ausente, uma antítese paradoxal. Apenas o corpo físico está ali. A mente viaja por recônditos que os demais presentes ignoram. Fenômeno que já foi designado como "intimidade artificial" por Esther Perel, psicoterapeuta belga, durante o festival SXSW, realizado em Austin, no Texas, de acordo com relato de Ronaldo Lemos. Para ela, nossa vida se desenrola em permanente estado de atenção parcial. Pois em todos os momentos, nunca estamos 100 presentes. Não conseguimos nos desligar do celular, das mensagens, dos whatsApps, dos tik-toks, do twitter ou Instagram.

Para muitos, esse permanente chamado das mídias funciona como anestesia seletiva para a dificuldade das relações humanas. Interessamo-nos pelo outro, mas nem tanto. Não gostamos de que os relatos sobre doenças ou dificuldades se estendam. Por isso, o celular é um escape.

Isso acontece até entre casais ou com amigos íntimos. Tenho um amigo tão dependente do celular, que ele não toma conhecimento do que ouve. Os sons emitidos pelas pessoas que estão ao seu lado não conseguem competir com o potente chamado da internet. O celular torna dispensável a atenção às pessoas físicas.

Ao comentar o tema, Ronaldo Lemos se recorda do experimento do rosto parado feito pelo psicólogo Edward Tronick nos anos 1970. Grava-se a expressão da jovem mãe, em relacionamento normal com seu bebê de seis meses. Ela sorri, o bebê devolve o sorriso. Ela balbucia algo na linguagem que a criança assimila e a resposta é uma gargalhada. Depois, a mãe paralisa o rosto. Olha fixamente a criança. Esta gargalha. O rosto da mãe continua impassível. O bebê grita. Nenhuma reação da mãe. O bebê chora e passa a soluçar, já em desespero. Só então a mãe novamente retoma suas reações normais e tranquiliza o filho.

Estamos todos vivenciando essa experiência. Somos simultaneamente a mãe e a criança. Incapazes de conceder atenção integral ao outro, consciente ou inconscientemente nos acode uma dívida emocional em relação a todos os que nos cercam. Somos o bebê, sequioso de uma atenção, pois nunca houve época em que a carência de afeto, carinho e acolhimento fosse tão intensa, e somos a mãe, impassível diante das angústias e necessidades alheias.

O poder inebriante das mídias sociais, tão sedutoras em suas imagens coloridas, sonoras, capazes de nos transportar para a ficção que nutrimos em nossa alma é tamanho, que a fealdade do mundo real nós escondemos de nós mesmos.

Não há perspectiva de conversão. Esta viria com a firme deliberação de uma rebeldia contra essa intimidade artificial. Empenho em conferir atenção total para aqueles com os quais nos relacionamos. Idêntica postura ao exigir atenção de quem está conosco. É frustrante estar com alguém que prefere o celular à nossa companhia, assim como o mau hábito - e a falta de polidez - de se entregar a mão frouxa para o cumprimento. Ou de não encarar o outro quando do aperto de mãos.

Quem possui filhos ou netos pequenos sabem que a fixação no mundo mágico e enganador da internet é uma enfermidade. Adolescentes são ensimesmados e se tornam pessoas insuscetíveis de um real vínculo afetivo. Nos Estados Unidos, pesquisa realizada em 2019 indicou que 22 dos millenials têm hoje zero amigos, 25 afirmam não terem "conhecidos". Essa condição parece ter desaparecido do vocabulário e da prática do convívio. Muitos os jovens que têm "seguidores". Manada ignara que acompanha, curte, clica e não se envolve. Não inclui aquele a quem você pode recorrer se necessitar de socorro ou amparo.

As novas gerações são mais deprimidas, estressadas, ansiosas e angustiadas. Por isso cresce o número dos que procuram estudar psicologia, exatamente porque pressentem isso e se propõem a fazer algo que mitigue o desconforto em que a maior parte da sociedade passou a sentir. Multidões que não se conectam de verdade. As conexões virtuais constituem hoje a ficção que nos mantém na automação e no ritmo exigidos. Tudo bem superficial, bem artificial, de maneira a nos poupar o sofrimento inescapável que adviria de relações de verdade.

Você, para mim, é assunto exclusivamente seu, diz com ironia um querido amigo. O meu tempo é reservado para a minha vida web. Você que se vire com seus problemas.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão
Em 05 04 2023



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