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ENGENHOS DA SEDUÇÃO
Acadêmico: José Renato Nalini
A leitura do livro "Engenhos da sedução" de Mary de Camargo Neves Lafer é uma deliciosa experiência.

Engenhos da sedução

A leitura do livro "Engenhos da sedução" de Mary de Camargo Neves Lafer é uma deliciosa experiência. Em tempos de malversação no uso do verbete "mito", é salutar encontrar cinco leituras do relato mítico abrigado no "Hino Homérico a Afrodite", elaboradas com talento e erudição.

A proposta de Mary foi "estimular meus possíveis leitores a outras aventuras reflexivas neste universo fértil e deleitável da literatura grega antiga" e isso ela obteve com êxito.

Para os jejunos, é acessível e agradável saber um pouco mais sobre os hinos gregos, notadamente os homéricos, assim chamados por se servirem do "mesmo verso, o hexâmetro, o mesmo tipo de sintaxe, o mesmo léxico e a mesma 'dicção homérica". A finalidade dos hinos homéricos é honrar um ou mais deuses e aquele devotado a Afrodite é considerado o mais antigo e o mais belamente elaborado.

Seu conteúdo é instigante: Zeus, em sua divina hegemonia, pretendeu coartar os excessos de Afrodite, que não respeitava a distinção entre deuses e mortais e abusava de seu poder de sedução, trazendo instabilidade para o Olimpo. Isso porque do relacionamento entre um deus e um humano resultava um semideus, algo que o supremo gestor olímpico abominava.

Zeus prepara uma vingança contra Afrodite, fazendo-a apaixonar-se por um troiano de nome Anquises. Deslumbrado com a presença da deusa, sem saber exatamente quem ela é, enuncia ele uma série de nomes e títulos. Deduzia a sua imortalidade, porque ela se preparara com apuro com o objetivo de seduzi-lo. Afrodite, "uma potência de astúcia e engano", quer convencer o troiano de que ela também é mortal. Uma jovem virgem, oriunda da Frígia. Justifica, inclusive, conhecer o idioma de Anquises, pois foi "uma troiana nutriz" que a alimentara desde a infância.

Embora ainda desconfiado, o jovem cede ao poder de sedução de Afrodite e ambos vão ao leito. Foi o bastante para que a deusa assumisse a superioridade na relação e tranquilizasse o troiano, temeroso das consequências de haver coabitado com uma imortal. Ela lhe promete um filho ilustre, da qual provirá nobre descendência. Todavia, Anquises não pode revelar quem é a mãe de seu filho, sob pena de vir a ser fulminado por um raio enviado por Zeus.

No ensaio "Artimanhas da persuasão", Mary Lafer se detém nessa arte de convencer alguém, tão íntima aos que abraçam a carreira jurídica. Enquanto noção, a persuasão tem o seu sentido estabilizado no século V a. C, "quando se transforma em uma técnica a serviço da Retórica". Num primoroso retrospecto da persuasão, mencionada por outros autores, Mary enfatiza os modos de agir da persuasão: seja mediante uso de palavras agradáveis e aduladoras, ou até por prescindir de palavras. Em Sófocles, em "As Traquínias", cita-se o "unguento de persuasão", cuja natureza é mágica e adquire a feição de feitiço. Outra fórmula é o maravilhamento causado à visão, ou seja, o recurso a adornos, o embelezamento do corpo, inclusive uma certa dissimulação quando necessário disfarçar deficiências naturais para iludir o outro.

Interessante a observação de que existe diferença entre Persuasão e Sedução: "Ambas supõem a participação do destinatário naquilo que está sendo proposto pelo sujeito. Entretanto, no segundo caso, a postura do destinatário é bem mais passiva. Persuasão carrega a ideia de concordância e não de disputa, e, igualmente, de sociabilidade, em oposição à força tosca, à selvageria e, ainda, a ideia de humanidade em oposição à animalidade". Persuasão se antagoniza com violência. É uma ferramenta engenhosa, de inteligência, de sutileza.

O Hino Homérico a Afrodite reflete a complexidade que envolve as relações entre verdade, mentira, realidade, verossimilhança. As mentiras bem urdidas e extremamente verossímeis de Afrodite se repetem no foro, onde a ficção prepondera e a verdade, quanta vez, permanece oculta para sempre. O adestramento da advocacia para a "captatio benevolentia" do magistrado só encontraria freio na ética, a ciência moral do comportamento humano em sociedade. Ciência praticamente banida do sistema Justiça brasileiro, a cujos integrantes - em lugar do próspero e crescente "turismo jurídico", melhor conviria a leitura do encantador livro de Mary de Camargo Neves Lafer, "Engenhos da sedução - o hino homérico a Afrodite em quatro ensaios e uma tradução".

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão
Em 07 03 2023



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