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O IMAGINÁRIO SOCIAL DO FUTEBOL
Acadêmico: José de Souza Martins
A Abolição da escravatura tornou necessária a criação de um imaginário que definisse novas regras de relacionamento cotidiano, de costumes e de modo de vida com base nas possibilidades sociais decorrentes do trabalho livre.

As Copas do Mundo representam o ápice de uma inovação social que, no Brasil, chegou sete anos depois da abolição da escravatura. O futebol foi um dos primeiros e significativos episódios do advento da modernidade em nosso país porque desdobramento e consequência do início do reordenamento das relações sociais com base no princípio da igualdade jurídica dos seres humanos.

Um jogo de futebol, já então, pressupunha a igualdade jurídica dos jogadores. Portanto, futebol era tecnicamente incompatível com a desigualdade de humanidades própria da escravidão. Os jogadores só podem se enfrentar como iguais. Aliás, a Inglaterra industrializada, do trabalho livre, país originário do futebol, proibia a escravidão não só em seus territórios mas também nas empresas inglesas onde quer que fossem estabelecidas.

Aqui, o brasileiro Charles Miller, nascido no Brás, descendente de escoceses, introdutor do futebol entre nós, era funcionário da São Paulo Railway. O primeiro jogo de futebol foi entre um time da ferrovia e um da São Paulo Gaz Company, na Várzea do Carmo.

A Abolição da escravatura tornou necessária a criação de um imaginário que definisse novas regras de relacionamento cotidiano, de costumes e de modo de vida com base nas possibilidades sociais decorrentes do trabalho livre. Abriu o caminho para a modernidade do mundo que se expressa em rivalidades sociais como a do futebol e o teatro dos falsos inimigos, os de jogadores e os de torcedores.

No Senado do Império, em 1888, o principal protagonista do fim da escravidão, Antonio da Silva Prado, fez da tribuna um discurso sobre a base ideológica da nova relação laboral: se o trabalhador livre fosse “morigerado, sóbrio e laborioso” poderia tornar-se proprietário de sua terra de trabalho. Poderia ascender socialmente e mudar de situação de classe social. Na escravidão, o convencimento do trabalho se dava pelo tronco e pela chibata do feitor. No trabalho livre, pela ideologia da expectativa da ascensão social e todas as fantasias correlatas.

A cerveja no lugar da cachaça foi uma das mudanças de costume alimentar relacionadas com a nova realidade do trabalho. O advento do futebol agregou-se ao elenco de alterações de conduta, como essa, de gosto e de interesse para a classe trabalhadora. Ninguém as planejou. Elas foram surgindo e juntando-se para formar uma espécie de sistema cultural de referência compatível com o novo modo de vida.

Nesse sentido, na linguagem imprópria de hoje, o futebol chegou aqui como um esporte de direita, alienador, ópio do povo. A esquerda da época era estrangeira e anarquista. Os anarquistas eram cultos, valorizavam a educação. Não eram aficionados de futebol. A alienação seria vencida pelo saber, pela consciência social e verdadeira das contradições sociais. Não o foi.

Instrumento de afirmação identitária e até de ascensão social, o futebol acabou assumido como esporte da classe trabalhadora. Foram comuníssimos, até há poucos anos, os times de várzea e os de fábricas: em vez do proletariado levar adiante a luta de classes, levava adiante a disputa, em nome das empresas, dos operários de diferentes fábricas pela recompensa imaginária da vitória sobre o adversário, embora potencial companheiro de classe social. Uma orientação da identidade proletária movida pela realidade e não pelo histórica e politicamente possível.

Houve, também, diferentes modalidades de incorporação do futebol à vida das pessoas comuns, no Brasil inteiro, em chave oposta. Entre os índios xerente (Akwe, gente importante), de Goiás, levado por um antropólogo da USP, foi o futebol interpretado como jogo de 22 homens que correm atrás da bola, contra a bola e não contra um time adversário. Os índios entenderam que não tinha sentido simular uma disputa sem propósito entre seres humanos que se definem como nós e não como o “eu” oposto ao “outro”.

Um dos casos notáveis de assimilação do futebol contra o pressuposto do conflito entre iguais, foi o que ocorreu na Favela de Heliópolis, ao lado da Vila Carioca, onde a família de Lula morou quando veio de Pernambuco para trabalhar em São Paulo.
Lugar de migrantes nacionais, com acentuada presença de negros e brancos, vizinhos e amigos, com o tempo, também parentes e progenitores de uma geração de mestiços. No fim do dia de trabalho reuniam-se num boteco para jogar dominó, palitinho ou 21 e tomar cerveja. Não era incomum, na disputa, o palavrão de motivação racial para ofender o outro. Um senhor idoso, negro, de grande ascendência sobre os moradores, fazia a crítica dessa conduta. Decidiram, então, realizar no último domingo anterior ao Natal, de cada ano, um jogo entre pretos e brancos.

Para participar, mestiços teriam que optar: ou negro ou branco. O que lhes trazia uma dolorosa consciência da fratura racial vicinal e familiar. O jogo era no campo do Flor de São João Clímaco. Muito palavrão, grandes ofensas contra a mãe do outro, de cunho racial. Vencesse quem vencesse, tudo terminava com um churrasco pacificador, de que participavam todas as famílias, com muitos abraços e muitos pedidos de desculpa, o racismo questionado por seus próprios agentes e vítimas, comunitariamente. O antropólogo Wagner Morales fez um belo documentário sobre essa comunidade multirracial, inteligente e socialmente criativa: “Preto contra Branco” (2005) [https://youtu.be/j5UySdovsvM].





Publicado no suplemento "Eu& Fim de Semana", do jornal Valor Econômico, Ano 23, nº 1.137, 09 de dezembro de 2022.



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