Compartilhe
Tamanho da fonte


O INDEFECTÍVEL RISCO DA JUDICIALIZAÇÃO
Acadêmico: José Renato Nalini
É urgente criar a consciência cidadã de que Justiça é serviço público, mais do que expressão da soberania estatal.

O indefectível risco da judicialização

O indefectível risco da judicialização

Vive-se em uma sociedade de riscos, então é impossível pretender que se possa escapar ao risco da judicialização. Esta condição inibe a higidez negocial no Brasil, de uma forma tal, que a comunidade internacional já detectou, mas aqui continua fora do radar da sociedade.

Uma visão pueril e equivocada atribuía ao vigor da Democracia instaurada em 1988, após mais de vinte anos de autoritarismo, o fato de existir um juiz de prontidão para resolver toda e qualquer questão que atormentasse os brasileiros. Alguns chegaram a chamar a judicialização de “termômetro democrático”. Um sinal indicativo da plenitude do regime, seria a ampla, geral e irrestrita abertura dos Tribunais a toda espécie de demanda. Com isso, chegou-se à incrível cifra de mais de cem milhões de processos judiciais em curso.

É patológico o fenômeno de estarem submetidas ao Judiciário milhões de questões que melhor seriam resolvidas no âmbito consensual. A excessiva judicialização é doença grave. Mais grave ainda, é a sociedade curvar-se à situação verdadeiramente surreal.

Quais as causas desse absurdo?

Elas remontam ao ano 1088. Sim, há mais de mil anos. Foi o ano em que o Studium de Bolonha se estabelece como a primeira sede de ensino livre e independente das escolas eclesiásticas. A Escola Jurídica marcou o nascimento da Universidade no Ocidente. Foi o modelo adotado em Coimbra, exportado para o Brasil em 1827, quando Pedro I quis uma burocracia tipicamente tupiniquim, desvinculada da cultura do colonizador.

Desde 1827, quando criadas as duas primeiras Faculdades de Direito no Brasil, o padrão se replicou e só se registrou a explosão dessas escolas. Hoje o Brasil possui mais Faculdades de Direito do que a soma de todas as outras existentes no restante do planeta.

Prevalece, no espírito jurídico, o velho esquema do fetiche da lei, como se a norma fosse o único aspecto relevante do fenômeno e não se devesse levar em consideração também os valores que incidem sobre os fatos, na visão tridimensional do jusfilósofo Miguel Reale.

Para agravar, o Brasil concebeu um sistema Justiça excessivamente sofisticado. Há cinco ramos da Justiça, dois deles chamados “comuns”, no âmbito federal e estadual. Se o critério for o arranjo de nossa atípica federação, estaria faltando a Justiça municipal.

Para abrigar a crescente produção de profissionais dessa área, existem o Ministério Público, numa carreira paralela e equiparada à da Magistratura, a defensoria pública, as procuradorias das Fazendas Públicas, as carreiras jurídicas na Polícia, nas consultorias, tudo culminando com mais de um milhão de advogados.

Algo inacreditável ocorreu no Brasil: de tanto apreço ao duplo grau de jurisdição, chegou-se ao paroxismo de um quádruplo grau de jurisdição. Tudo começa na primeira instância, onde o juiz monocrático emite sua decisão, mera “minuta” daquela que passará pelos Tribunais locais – de Justiça, Federal de Recursos, Regional do Trabalho, Regional Eleitoral ou Tribunal de Justiça Militar, – chegará ao Superior Tribunal de Justiça, verdadeira terceira instância para a Justiça comum e desaguará no STF, o ápice da estrutura piramidal aqui instaurada.

Isso faz com que as lides se eternizem. Sabe-se quando têm início, não se tem notícia de quando terminarão. Para culminar em evidente desvio da racionalidade, um sistema recursal caótico permite o reexame da mesma questão por dezenas de vezes.

O sistema Justiça brasileiro cresce de forma incessante, custa bastante ao povo faminto e desprovido do mínimo existencial, sofre de aguda entropia e não há perspectivas de mudança do cenário.

Remédios: mudança drástica no sistema de concurso público, para aferir atributos hoje ignorados: inteligência emocional, empatia, capacidade de comunicação e de adaptação ao novo, noção do significado de uma Justiça que deve resolver problemas e não institucionalizá-los, dificultando a vida do cidadão. Exigir eficiência, princípio incluído na Constituição de 1988 dez anos depois de sua promulgação. Levar a sério as alternativas de composição consensual dos conflitos, mostrar à população o custo das lides intermináveis e o prejuízo que a imprevisibilidade do sistema gera a uma nação carente de investimento externo, para enfrentar os desafios postos pela contemporaneidade.

É urgente criar a consciência cidadã de que Justiça é serviço público, mais do que expressão da soberania estatal. Ela existe para atenuar a sobrecarga de atribulações que recai sobre as pessoas, não para angustiá-las ainda mais. Muita sofisticação doutrinária e jurisprudencial, muita retórica, muito discurso oco, enquanto o resultado pode às vezes ser considerado pífio e insuficiente.

Haverá espaço para essa agenda nos próximos anos?

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Opinião/Estadão
Em 31 de agosto de 2022



voltar




 
Largo do Arouche, 312 / 324 • CEP: 01219-000 • São Paulo • SP • Brasil • Telefone: 11 3331-7222 / 3331-7401 / 3331-1562.
Imagem de um cadeado  Política de privacidade.