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CARTAS PARA NÓS MESMOS
Acadêmico: José Renato Nalini
Impossível não lembrar Fernanda Montenegro e suas mensagens para analfabetos

Cartas para nós mesmos

Eu era um bom missivista. Isso antes da internet. Agora trocamos e-mails e WhatsApps. Mas gostava de receber cartas e de respondê-las. Também tenho dificuldade em me desfazer delas. Um dia, talvez em breve, meus filhos tenham a incumbência de queimá-las. Não tenho coragem de fazê-lo enquanto me resta lucidez.

Um querido amigo costumava dizer que um sintoma de perda de noção e de escrúpulo era escrever cartas ao leitor dos grandes jornais. Não compartilho dessa opinião. Penso que o extravasar sentimentos e querer partilhá-los com uma coletividade difusa - os potenciais frequentadores dos "painéis do leitor", é um dado significativo. É expor-se, humildemente, ao escrutínio coletivo. Pois é comum que haja "cartas ao leitor" originadas por outras "cartas ao leitor".

Mas é lamentável que as redes sociais tenham reduzido substancialmente o uso da correspondência formal convencional. Assim como a filatelia se ressente da diminuição na emissão dos selos, com suas celebrações, com as coleções que estimulavam a fantasia dos filatelistas, ávidos por conhecer os países cujas efígies postais mais os fascinavam.

No terceiro volume das "Obras completas de Adolfo Bioy Casares", publicado pela Biblioteca Azul, ele fala sobre as cartas, o "gênero literário mais difundido", já que "o número dos seus autores deve ser bem próximo do de homens e mulheres que habitam o mundo, incluindo, por certo, os analfabetos, pois parece improvável que boa parte deles não tenha ditado pelo menos uma ao longo da vida".

Impossível deixar de lembrar Fernanda Montenegro como artífice de mensagens para analfabetos, no filme "Central do Brasil", de Walter Salles. Infelizmente, este país continental não conseguiu acabar com essa vergonhosa mácula do analfabetismo integral, muito menos com o analfabetismo funcional, diante da prática falência do Ensino Fundamental.

Professoras de antanho estimulavam seus alunos a escrever cartas. Era comum que o educando escrevesse uma carta para a mãe, no dia das mães, para o pai, no dia dos pais. Até para os avós, no pouco lembrado dia dos avós, data em que se celebra Sant'Ana e São Joaquim, avós de Jesus Cristo. E hoje? Esse hábito resiste às novas tecnologias da comunicação e da informação, resultantes da invasiva Quarta Revolução Industrial?

Tive recorrentes dúvidas sobre as cartas escritas em momento de angústia ou aflição. Recados amargos que vão chegar ao destinatário quando talvez nossa mágoa tenha sido atenuada. Podemos até nos aliviar, escrevendo mensagem de impacto na sensibilidade de pessoas queridas. Sempre me questionei se isso deveria ser partilhado ou não. Não cheguei a concluir, mantendo-me em permanente hesitação.

Mas para Bioy Casares, são essas, exatamente, as cartas mais relevantes. Ele diz que as melhores são as cartas nas quais "discorremos sobre nós mesmos ou sobre coisas que nos dizem respeito". As missivas formais, são aquelas em que por delicadeza ou deferência só contemplamos o destinatário e abusamos das frases feitas, de lugares comuns, de repetições pouco pessoais.

Nunca me furto a abraçar epistolarmente amigos que perderam seres amados. Penso que isso atua no conforto, fornece a sensação de não se sofrer sozinho, mas contar com o carinho de pessoas que nos estimam e sabem o que estamos a suportar. As cartas não deixarão de existir. Mas a "nuvem" funcionará como relicário eterno desses pedaços de emoção?

Publicado no Jornal de Jundiaí/Opinião
Em 22 08 2022




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