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O FOGÃO DE PALAVRAS
Acadêmico: Gabriel Chalita
Ouço os que já se foram da minha vida. A voz de meu pai dizendo "Paciência, filho" é ainda canção em mim. Paciência, o fogo do amor aos poucos vai amolecendo as maldades que desafinam o mundo. 

Uma palavra precisa de cozimento para alimentar o mundo. Algumas se aprontam com pouco preparo, são expressões cotidianas de encontro. São dizeres bonitos de dar boniteza a outras vidas. "Bom dia", "Que bom que você está aqui", "Obrigado, pela gentileza", "Conte sempre comigo". Os afetos saem dos compartimentos mais bonitos de nossa alma. E perfumam. O fogo bruxuleante, entretanto, chamega palavras que precisam de mais exigir. 

Dizer "eu te amo" é desnudar o íntimo e alimentar de amanhãs o hoje que nasceu encantado. Não há hoje sem ontem. Não há amor sem conhecimento. Conhecer as imperfeições e encontrar nelas alguma beleza também é uma forma de amar. 

O cozinheiro sabe separar o que não alimenta do que, depois de preparado, traz sabor à vida. Na mesa da casa da minha infância, as impurezas eram retiradas antes, inclusive, de levar ao fogo. As mãos cuidadosas punham de lado o que vem com o arroz e não é arroz, o que vem com o feijão e não é feijão.  

O amor é puro. É imodesto na compreensão das transformações que é capaz de causar depois do dizer o compromisso. No compromisso, a felicidade. Mesmo na dor. Mesmo nos entreatos de uma história bonita. Mesmo no desconfiar do que foi dito. É assim o saborear. Aos poucos.

Desconfio dos apressados. Se enfastiam rapidamente e se despedem. Há os que se lambuzam por misturar o efêmero com a permanência. Prometem o que não são capazes de cumprir. E comem a palavra solidão mesmo acompanhados. 

Há palavras de diminuição. Os gritos pipocam confusões e não alimentam. Não azeitam a vida de sabores ensinadores. Só fazem desarranjar possibilidades. É por isso que o ódio é palavra de cozimento impossível. Então, é melhor não desperdiçar. O ódio é ausência. Presença é amar.

O amor vai além dos encontros do corpo. O amor é o enlace de almas. É o preenchimento de partituras de melodias de viver. Demoradas. Que mudam a velocidade e o tom e que permanecem.

O fogão à lenha, de antigamente, exigia alguma paciência. Enquanto a conversa elevava o dia, a fumaça do que alimentava preenchia o ambiente.

É na companhia dos outros que me conheço melhor. É nos olhos dos outros que espelho o que me afasta e o que me aproxima de mim mesmo. E, depois, mesmo sozinho, eu vivo de tantos alimentos alimentadores de mim. Oferecidos por outras vidas. Desde sempre.

Eu, criança, cirandei a alegria dos embalos de minha mãe, com meu pouco pensar, com meu muito sentir. No seio generoso, o alimento vinha do fogão interno de um amor inapagável. E eu ria dos cuidados e dormia sonhando a ausência das desconfianças.

Os dias transcorridos de um viver sem pausas me ofereceram outras sombras para descansar e outros jardins para sorrir felicidades. A primeira professora, os primeiros amigos a compreender generosidade, o primeiro trabalho e os medos do erro. E o acerto de encontrar líderes sensíveis aos inícios.

Hoje enxergo os que trabalham comigo como vidas que se cruzam com a minha e que compartilham espaços de felicidade. Não sou dos que desconversam quando o assunto é do outro, nem dos que exageram quando o assunto sou eu. O egoísmo também não amolece, então é palavra que deve ser retirada do necessário fogão. 

Palavras doeram em mim. É assim o conviver. Nem todos se preocupam com o cozimento certo. Palavras sujaram em mim as pressas dos outros. Mas sou persistente. E prossigo acreditando que o bom é encontrar. 

Na antiga casa dos meus alicerces, nos alegrávamos com o simples. Um pranto quente nos dias frios. E o aconchego das palavras certas em todos os dias.  

Estou na idade de prosseguir cozinhando. E alimentando quem um dia conseguiu dizer "eu te amo". Foi em uma noite de luar. De um luar tão iluminador que as sombras se envergonharam e partiram. Partimos o bolo das promessas e um doce sentimento nos tomou. Ainda não era noite de dizer "eu te amo". E não dissemos. Embora nos tivéssemos amado.

O fogo foi nos fazendo conhecer. Muitas palavras nasceram das palavras que dizíamos e que despediam o tempo para ficarmos juntos. Nos estranhamos não poucas vezes. Precisamos abaixar e aumentar o fogo. Um pouco de água para a fervedura acalmar.

Nos alimentamos em outras casas e nos lembramos do bom de estarmos juntos. E, então, voltamos, discretamente. A palavra perdão e a palavra saudade nos alimentaram de humildade e a palavra alegria nos contagiou novamente. 

E, agora, estamos juntos. Com algum aprendizado. Juntos, somos mais capazes de juntar amor no mundo. Quando nos veem, comem no nosso sorriso a alegria do sentir amado.

Acendo o fogão todos os dias, e é esse o meu ofício enquanto estiver vivo. Vivo da crença de que quem passa por mim merece algum alimento. É de palavras que alimento o mundo. As que digo e as que escrevo. E as que faço nascer apenas por ouvir. Ouvir também é amar. Ouvir é uma receita para o preparo de outros dizeres para o alimentar.

Ouço os que já se foram da minha vida. A voz de meu pai dizendo "Paciência, filho" é ainda canção em mim. Paciência, o fogo do amor aos poucos vai amolecendo as maldades que desafinam o mundo. 

Quando lembro do coral da minha infância e da alegria que era entoar juntos a melodia de alguma composição e dos olhos de amor da minha mãe agradecida de estar ali. Quando lembro de alguma compreensão em dúvidas que vieram no meu viver. Quando preparo a palavra amizade. 

Sim, viver é definitivamente belo. Belo é dizer palavras e semear bondades. E acreditar que mesmo nos dias frios, há calor. 

Benditas sejas as palavras cozidas no fogão do amor.




Publicado em O Dia, 21 de agosto de 2022.




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