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AS ROUPAS NO VARAL
Acadêmico: Gabriel Chalita
A casa vazia será primavera outra vez. As palavras tristes haverão de ser emudecidas.

Uma a uma, vou prendendo e vou pensando.
Gosto dessas rotinas do limpar, do cuidar, do aguardar. O sol queima, mesmo nos invernos duros. E o vento brinca de dançar os lençóis nesse amanhecer do meu interior.

Olho por entre as tramas e busco alguma sujeira que pudesse ter sido mais forte do que a minha capacidade. Mesmo com a ajuda do sol, não vejo. Ouço sons da natureza e sons de mim martelando passados. Ouço que a morte, vez em quando, volta.

Faz um ano que ela me deixou e eu persisto olhando para a porta. Já me culpei, já me desculpei. Já me desinteressei de mim mesmo. Já coloquei na prosa, da mesa sem ninguém, a minha humanidade. E bebi um café quente para esquentar minha solidão.

Ela me deixou por outro. Mais jovem do que eu. Mais alegre do que eu. Mais leve, talvez. Sei nada desse outro. Só sei o que imagino. Quando ela revelou os sentimentos, usei todos os cuidados para não dizer. Ouvi o fim do tempo da presença. Ouvi o barulho do seu arrumar de roupas. Ouvi os passos me explicando a decisão.
Sempre soube que o amor é rocha e é pó, que alicerça dias lindos e que os dispersa sem grandes avisos. Vivemos dez anos juntos. O que é pouco para quem acredita em eternidades.

Eu a vi com um vestido branco e os cabelos molhados de pressa. E entreguei a ela minha intenção de enlaçar nossas vidas. E assim foi feito. O casamento me garantiu dias felizes. Sei disso e, então, não reclamo. Sabia nada dos riscos do fim, quando o fim chegou. Naquele dia, o ar se fingiu respirável, o chão se fingiu amigo, isso porque sou plantador, e um plantador compreende a espera. Ela chorou, quando disse o fim; então, eu entendi que não era o fim. Algumas peças suas ficaram. E eu deixei. Mesmo percebendo que essas sobrevivências me agrediam.

Nos vimos mais de uma vez. Eu, quieto, e ela apressada. Vi o seu novo companheiro um pouco atrás. Nos olhamos. Não nos vimos. Seguimos. Sentei sozinho na entrada da casa e chorei como deve chorar um homem. Chorar de amor é emprestar delicadeza à vida, é cultuar o mais sagrado dos sentimentos.

Alguns dizem que há mulheres demais no mundo, que eu deveria comemorar a liberdade. Ouço e desisto de explicar que sentimentos se sentem. Que o amor, enquanto ama, esculpe na arte os sons da unicidade. Ouço ainda sua voz me dizendo amor, ouço seu jeito menina de brincar de viver. De me acordar bem-humorada antes do dia preguiçoso. Sim. Fomos felizes.

Aos que atestam que ela não me ama, eu não reajo. Talvez não me ame mais. Culpa nenhuma tem ela do amor que eu ainda sinto.

O sol está bonito, logo vai secar os lençóis, as toalhas, as roupas. Vejo uma camisa que ela gostava, quando eu usava. E vejo sua imagem.

Faz um ano hoje. A vida que escorria do nossa amor era cachoeira limpa, alimentando esperanças de um futuro juntos. Não sou teimoso em creditar a ela minha felicidade ou sua ausência. E sei, também, porque sou um homem de ouvir, que o que sinto vai um dia ser apenas lembrança. Não tenho pressa para um outro amor, mas sinto que virá. Sinto isso como sinto as rosas rompendo os silêncios e desabrochando.

A casa vazia será primavera outra vez. As palavras tristes haverão de ser emudecidas. Enquanto isso, limpo as peças e penduro no varal. E desalojo qualquer raiva de sua partida. Raiva não é companhia boa em nenhum interior. Esperança, sim.

Tenho sido apresentado a algumas mulheres. E tenho até alimentado algum gostar. Mas nada que ocupe minha alma. Minha caprichosa alma onde ela ainda mora.
Se ela quisesse voltar, eu aceitaria e nada diria sobre o tempo da dor. Ainda não consegui fechar a porta. Ainda não consegui abrir a porta.

Uma velha amiga, no entardecer dos seus dias, me confidenciou que sentia saudade dos dias em que sofria de amor. Então, vou cultivar sem pressa esses dias até florescer o que tiver que florescer.

Daqui a pouco, vou retirar as peças do varal. Elas têm o tempo certo de permanecer.




Publicado no jornal O Dia (RJ), 31 de julho de 2022.




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