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RAIVA: AUXILIAR DO PODER
Acadêmico: José Renato Nalini
Quando à espreita do debate se denota a raiva, a ira, a intolerância quanto a qualquer desconformidade com o pensamento dominante, o sintoma indica a consolidação do fanatismo.

Raiva: auxiliar do poder

Quando o diálogo é substituído pela imposição de uma ideia, quando – antes de ouvir o argumento contrário – já se constata o adversário a portar um tacape virtual, isto é sinal denunciador de que uma patologia contaminou as consciências.

Quando à espreita do debate se denota a raiva, a ira, a intolerância quanto a qualquer desconformidade com o pensamento dominante, o sintoma indica a consolidação do fanatismo.

O fanático não consegue ouvir. Ele age como ditador: quer obrigar a todos à homogeneidade. Não existe contraditório. Quem ousa dizer ou até pensar algo diferente é um inimigo que deve ser liquidado.

Seres sensíveis captam essa enfermidade tão própria ao nosso tempo. Virginia Woolf refletia sobre o motivo por que os homens estão extremamente zangados a maior parte do tempo. Para ela parecia surreal que os poderosos, tendo o séquito subserviente de áulicos à sua volta, sempre as mesmas moscas a reverenciar a autoridade, fazendo de sua vontade uma ordem imediatamente cumprida, conseguissem ficar irados. Ela concluiu que a raiva era sempre o espírito auxiliar, familiar, do poder. E quando é que o poder é acometido de mais raiva? Quando ele é ameaçado.

Richard Holloway, no livro “Entre o monstro e o santo – reflexões sobre a condição humana”, observa que, “dada a ferocidade cruel com que os poderosos protegem seu direito de dominar e controlar a vida privada dos outros, o que nos poderia salvar do desespero é perceber a existência de uma série de pressões compensatórias”

Dentre tais pressões, é a empatia que se consegue nutrir em relação às vítimas da crueldade. O exemplo à disposição no Brasil de nossos dias, é solidarizar-se com os índios, que estão sendo assassinados, suas crianças violentadas, sua morada profanada. Mas também é fazer algo para mitigar a fome de trinta e três milhões de brasileiros. Ou atuar no sentido contrário à volúpia armamentista, cujo resultado é o abuso e os excessos praticados a pretexto de falaciosa segurança pessoal.

Em tempos plúmbeos, “se quisermos sobreviver e prosperar, devemos trabalhar tanto no desenvolvimento da nossa capacidade de empatia quanto no desenvolvimento da nossa capacidade de racionalidade, para podermos resistir e nos desviar das energias imperiosas que ameaçam, não só a nossa própria felicidade e o nosso bem-estar, mas também a destruição de nossa espécie”.

Nossa espécie está, sim, ameaçada de extinção. Ela não sobreviverá num deserto devastado, com a inclemente e insensata destruição de nosso habitat. Com o incêndio de nossas florestas. Com a morte cruel de nossa biodiversidade. Holloway fala sobre a palavra grega metanoia, que significa mudar de ideia. Não é processo singelo de reverter uma decisão anterior. A palavra foi usada por Jesus para uma verdadeira reversão, mudança mais profunda, a inversão de direção da vida. Metanoia nos convida a realizar um autoexame radical: o que construímos em nossa vida e o que estamos recebendo com as escolhas que fizemos.

Estamos conseguindo olhar o nosso próximo como ser humano merecedor de tratamento digno? Ou continuamos a enxergá-lo como “coisa” ou o deixamos na invisibilidade? Só isso explicaria o silêncio conivente, a cumplicidade ao silenciar quando tanto se perpetra de malévolo em relação aos desfavorecidos.

Estamos preparados para dialogar também com os cruéis, com aqueles que não se compadecem do infortúnio alheio, ao contrário, atuam no sentido de afligir ainda mais a quem está aflito?

Temos condição de considerar o cruel superlativo um ser humano? Somos capazes de nutrir comiseração por aquele que, podendo minorar a desgraça alheia, é responsável por intensificá-la?

Existe condição para dialogar com quem parece já não ter traço algum de humanidade? Seria mediante o diálogo que vítimas e sociedade reconheceriam os criminosos como seres humanos que fracassaram moralmente, seja pela coerção psicológica de sua mente contaminada, seja pelas convicções pervertidas desenvolvidas em consciência distorcida ou até pelo medo. É válido alimentar a esperança de que se possa exigir ao desaventurado uma conversão e assunção de suas culpas?

Otimistas detectam sinais esperançosos de que parte da sociedade humana esteja começando a entender que justiça e reconciliação devem ser a resposta aos males da força e disso depende a edificação de comunidades saudáveis. Esperança é o ingrediente que pode nos confortar no presente momento histórico em que o desalento prospera, tantas as reiterações de desumanidade que nos são dadas presenciar.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Opinião/Estadão
Em 15 07 2022



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