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A GRANDE ASTÚCIA
Acadêmico: José Renato Nalini
A síntese da intenção de Fábio Ulhoa Coelho ao escrever “Biografia não autorizada do direito” poderia ser o seu conceito de “grande astúcia”.

A grande astúcia

A síntese da intenção de Fábio Ulhoa Coelho ao escrever “Biografia não autorizada do direito” poderia ser o seu conceito de “grande astúcia”. Apreendo perfeitamente o que ele quer dizer: “A astúcia é isto: esconder a verdade sob uma cobertura ilusória. A Grande Astúcia do Direito contemporâneo é fazer parecer que há força na lei, ciência nos raciocínios, lógica nos julgamentos e Justiça no mundo”.

É exatamente isso o que, no universo jurídico, alguns intuem, poucos sentem e a maioria ignora e faz questão de não pensar.

Após meio século de imersão no direito, angustio-me com a sensação de que não conseguimos edificar um convívio civilizado, a despeito da sofisticação da ciência jurídica. Ela não é hoje somente uma árvore frondosa, prenhe de inúmeros ramos. É mais: uma floresta intrincada, com especializações que se aprofundam em elucubrações teóricas, mas cujo resultado em tornar a humanidade menos infeliz é praticamente nulo.

A cena judiciária é teatral. Um cenário propício a gerar a expectativa de algo sério e grave. Uma linguagem premeditadamente ininteligível ao injustiçado. Duelos verbais que sugerem erudição. Manipulação da verdade reforçada por axiomas indiscutíveis: “o que não está nos autos não está no mundo”. Certeza nutrida pelos personagens lúcidos, de que a verdade se esvai, substituída por um diáfano véu da versão tecnicamente construída.

Fábio tem experiência nisso. Não se questiona a formatação do sistema justiça num país iníquo e essencialmente injusto. É que os responsáveis “têm o senso crítico amortecido pelo fortíssimo imaginário que a narrativa mobiliza nas pessoas da comunidade jurídica”.

Essa tendência a considerar a carreira jurídica a mais importante e valiosa para a sociedade contaminou todos os agentes. A cultura ufanista é invencível. Prova disso o sucesso das Faculdades de Direito que, no Brasil, são em número superior à soma de todas as outras existentes no restante do planeta. São elas que, com sua visão anacrônica de mundo, fornecem os quadros para todas as profissões do direito. Recrutados mediante necrosado método de aferição da capacidade mnemônica. Para fazer mais do mesmo, com absoluta exclusão da capacidade de pensar.

A retórica serve para justificar tudo. O exemplo da vaquejada é emblemático: “Constitucionalizaram-se os maus-tratos declarando-os legalmente culturais”. E não era só no Império que se nomeavam juízes afinados com o Imperador. O poder, qualquer espécie ou qualidade dele, atrai as moscas de sempre. Nenhum poderoso jamais reclamou ausência de bajuladores.

O excessivo crescimento das estruturas do sistema Justiça replica e intensifica essa paradoxal cultura do descompromisso com o justo. Fábio Ulhoa Coelho distingue bem as ordens do ser e do dever ser: “O direito funciona porque as normas jurídicas não dependem de sua efetiva aplicação para existir e valer. A crença no mundo do dever ser leva a essa esquizofrenia”. Acrescente-se que boa parte da Magistratura se satisfaz com a crença de que ela existe para trazer “segurança jurídica”, não para fazer justiça. É a parcela que se considera realizada quando sabe “avaliar a eficácia retórica de diferentes argumentos e construir o que se mostra mais convincente diante de um objetivo”. Daí a aversão ao consequencialismo, tal como o considero: um dever ético previsto no artigo 25 do Código de Ética da Magistratura Nacional. Prevalece o “faça-se justiça e pereça o mundo”. Até na cúpula do Judiciário: juiz decide à luz da lei, não do orçamento.

Instigante a visão pragmática de distinguir os homens entre os razoáveis e os irrazoáveis. Aqueles que gostam e procuram briga e os que preferem apaziguar. Tenho provas de que “a razoabilidade e a irrazoabilidade não dependem de nível de renda, escolaridade, gênero ou faixa etária”. Também concordo que “não há meios, em suma, de assegurar que o juiz será obediente ao legislador”. Mas o fetiche da lei resta superado há muito na história da civilização. Principalmente no Brasil, com um Parlamento que se esqueceu do que é representação, do que é vontade geral, do que é interesse público.

Na prolífica produção normativa, doutrinária e jurisprudencial, é muito fácil ao juiz escolher o que reforça sua opinião. Por mais que se esforcem os pensadores, não há ciência na interpretação da norma jurídica. “As normas jurídicas são o mais importante ingrediente do argumento”. Como pretender a utopia da “segurança jurídica”? Ela está na retórica, a conclusão de Fábio Ulhoa Coelho. Com sua autoridade de professor, é preciso insistir na tecla: “boa parcela do clima de insegurança jurídica no Brasil é resultado da baixa qualidade dos cursos jurídicos, da burocratização desconcertante do mestrado e do doutorado (querem um impossível conhecimento científico das normas jurídicas), da abundância de dissertações, teses, livros e artigos rebuscados, redundantes e superficiais, bem como da predominância de pompas e salamaleques em palestras, seminários e congressos, em detrimento do conteúdo”.

Alguma esperança de reversão dos rumos caóticos desse universo?

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Opinião/Estadão
Em 28 01 2022



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