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MÚLTIPLOS TONS DA PODRIDÃO
Acadêmico: José Renato Nalini
Quem corrompe e é corrompido, faz a humanidade retroceder na sacrificada trajetória rumo a uma civilização compatível com a concepção de perfectibilidade dos humanos sobre o planeta Terra.

Múltiplos tons da podridão

Ninguém, nem mesmo os corruptos, teria coragem de defender a corrupção. Essa chaga aparentemente invencível, que impregna a vida pública e provoca mal imenso e incalculável, faz parte de nossa realidade. Evidência da fragilidade humana, a robustecer a causa dos que têm certeza de que o projeto que deu origem à criatura racional é um fracasso.

No discurso, a corrupção é abjeta. Execrados os que a praticam. Merecedores todos da inflexível dureza da lei. Um dos raríssimos consensos nacionais é o aplauso à descoberta e à punição de corrompidos e corruptores.

Rotineiramente, contudo, costuma-se absolver uma série de práticas tendentes a uma indesejável promiscuidade com o terreno da podridão. Considera-se legítimo que um pai pretenda obter vaga numa escola de elite, sem que o filho se submeta à avaliação prévia, com a finalidade de aferir se terá condições de acompanhar o grau de adiantamento da turma. Sem constrangimento, esse pai ou mãe recorre à proteção, sem lembrar que estaria subtraindo a chance a alguém com maiores méritos.

Não se repudia a tentativa de escapar a qualquer espécie de seleção, quando se trata de adquirir ingresso para um show, teatro, espetáculo, concerto, jogo de futebol ou qualquer outra performance, em que a prioridade seria cronológica. Há uma aceitação do uso do chavão “sabe com quem está falando?”, nenhum pudor em invocar parentesco, intimidade ou proximidade com algum nome daqueles que costumam “abrir portas”.

Valer-se de expedientes para ocupar lugar de destaque, impor-se como convidado a um acontecimento que afague o ego, exercer o desprezível ofício da bajulação, aparentemente poderia sugerir fissura leve de caráter. Mas, embutido nessa conduta, está o germe da corrupção, que também significa apodrecimento, carcoma, caruncho, decomposição, desmoralização, devassidão, eiva, infecção, perversão, podredum, podriqueira, podrura, putrefação e vício. Lamentável que isso possa ocorrer até nos mais lídimos defensores da política anticorrupção, se vierem a se considerar o único incorrupto entre os mortais. O pecado da vaidade, que Matias Aires tão bem dissecou em sua clássica obra.

Considerar-se superior e merecedor de reverências, de distinções e de tratamento diferenciado, é abrir espaço para abastardar uma convivência democrática, fundada na ínsita igualdade entre os humanos. A via condutora para essa contaminação que apeçonhenta as relações é o exagerado amor-próprio.


Indubitável que a autoestima é importante. Mas não é difícil que ela resvale para o egoísmo, para uma patologia que já depravou boa parte da sociedade. Egos inflados, quais mariposas em contínua busca de holofotes, pervertem a utopia de edificação de uma sociedade fraterna, que se ampare sobre a consciência da efemeridade da vida e da carência de cada indivíduo em relação a todos os demais.

O afã de ser considerado imprescindível para a espécie, insubstituível como primícia entre as criaturas, obscurece a visão sensata. Pouco se leva em consideração a prudência – “não se viva para que a sua presença seja notada, mas para que a sua ausência seja sentida” – e o amor de si, no paroxismo narcisista, conduz ao delírio e ao ridículo.

A República Federativa do Brasil ostenta as condições ideais para reinventar o significado da fraternidade. O constituinte de 1988 erigiu a fraternidade a um conceito jurídico. É urgente abrir os ouvidos para o apelo da fraternidade, que “não se encerra numa raça, numa classe, numa elite, numa nação. Procede daqueles que, onde estiverem, o ouvem dentro de si mesmos, e dirige-se a todos e a cada um. Em toda parte, em todas as classes, em todas as nações, há seres de ‘boa vontade’ que veiculam essa mensagem. Talvez eles sejam mais numerosos entre os inquietos, os curiosos, os abertos, os ternos, os mestiços, os bastardos e outros intermediários”, diz Edgar Morin.

O chamado à fraternidade é suscetível de superar a viscosidade e a impermeabilidade da indiferença e oferece um outro ângulo para se encarar o fenômeno da corrupção. Qualquer forma de obtenção de vantagens que sobressaiam à regra geral, qualquer deslize ético, alarga a via sedutora de quem não se apercebe de que faltas mínimas, aparentemente veniais, conduzem ao deletério.

A corrupção, sob qualquer de suas infinitas tonalidades, ignora o apelo à fraternidade. Putrifica um convívio que precisa se alicerçar sobre a confiança no outro. Descredencia a atuação do Estado, mera formatação idealizada para transitoriamente coordenar a existência humana em sociedade, até que o estágio civilizatório viesse a tornar desnecessária o uso do monopólio da força e do poder.

Quem corrompe e é corrompido, faz a humanidade retroceder na sacrificada trajetória rumo a uma civilização compatível com a concepção de perfectibilidade dos humanos sobre o planeta Terra.

Aqueles que de fato sonham com um Brasil que garanta a todos os seus filhos a mínima dignidade existencial e que não pactuam com qualquer modalidade de desnaturação dos escassos recursos essenciais ao atendimento das necessidades básicas, precisa se acautelar e refletir se não incorreu, ainda que involuntariamente, num desses hábitos. Eles trazem, em si, a potência de um veneno maior. Simultânea à prodigalidade dos costumes, reflexo da exuberante natureza humana, a camaleônica possibilidade de agasalharem ardis, na infinita coloração com que o mal pode se apresentar.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Opinião/Estadão
Em 21 01 2022



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