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A QUE PONTO CHEGAMOS!
Acadêmico: José Renato Nalini
A fraude tem muito mais do que cinquenta tonalidades.

A que ponto chegamos!


Por lecionar desde 1969, em inúmeras instituições de ensino, sempre soube que alguns alunos contratavam colegas mais estudiosos para a elaboração de seus trabalhos. Nunca apurei responsabilidades. Apenas elogiava em sala de aula o autor do trabalho. Além de aprimorar sua formação, ainda ganhava com isso.

Tinha consciência de que esse é um comércio próspero. A volúpia na exigência de TCC – Trabalho de Conclusão de Curso, a multiplicação dos cursos de pós-graduação em sentido lato e em sentido estrito criaram promissora bolha.

Bom saber que isso não ocorre só no Brasil. A reportagem “Boas Práticas” da revista Pesquisa-FAPESP de dezembro noticia que as “fábricas de ensaio” podem se tornar ilegais no Reino Unido. São sites da internet que, mediante paga, produzem trabalhos para estudantes incapazes ou negligentes. O subsecretário de Estado para Aprendizagem e Competências, órgão do Departamento de Educação do Reino Unido, Alex Burghart, considera antiéticas tais empresas. Elas depreciam o esforço realizado pela maioria dos alunos e ainda lucram com isso.

Não é fácil apurar a ocorrência. Com o desenvolvimento do mundo digital e das tecnologias da informação e comunicação, houve um apuro na organização dessas “usinas de produção universitária”. Elas garantem trabalhos bem escritos e imunes aos softwares antiplágio.

A Inglaterra tentou coibir esse expediente que prestigia a mentira. Atribuir a um aluno uma obra que ele apenas “comprou”. Realizou supervisão remota das provas online, contrataram sérvios de empresas especializadas em monitorar estudantes durante as provas, bloqueando seus navegadores da internet e vigiando-os pelas câmeras de seus notebooks.

Só que a ocasião gera oportunidades. O outro lado também se aparelhou. A Agência de Garantia de Qualidade para a Educação Superior – (parênteses: por que o Brasil não cria uma, já que os sistemas estatais falham, sofrem contingências, defecções e a política estatal para a formação universitária se move segundo um catavento?), órgão fiscalizador das Universidades do Reino Unido, contabilizou 932 fábricas de ensaio em operação neste ano, quando em 2018 eram 638.

A mídia espontânea também ajudou. O jornal Financial Times apurou que um trabalho de história de mil palavras, para a graduação, sai por cento e vinte e quatro libras, cerca de mil reais e fica pronto em uma semana. Já para uma dissertação de mestrado com quinze mil palavras, bem sintética diante da nossa praxe de exagerar no volume, cobra-se quatro mil libras, ou trinta mil reais. Só que a encomenda precisa ser feita com dois meses de antecedência.

Como o tiro pode também sair pela culatra, já houve casos de sites que chantagearam os alunos, ameaçando denunciá-los à Universidade e aos professores, em virtude de atraso de pagamento.

A fraude tem muito mais do que cinquenta tonalidades. Há serviços disponíveis que tangenciam a ética. Em que padrão se enquadram? Mentoria personalizada ou “cola” comprada? São os aplicativos que hoje proliferam, como os das empresas Chegg e Course Hero, da California. Elas vendem assinaturas mensais de dez a vinte dólares, que fornece aos estudantes acesso a soluções de milhões de questões de provas e de livros didáticos armazenados em seus bancos de dados, além de oferecer suportes para as tarefas solicitadas pelos professores, o antigo “dever de casa”. A vantagem é que o assinante pode pedir ajuda para resolver problemas a especialistas em todas as áreas do conhecimento.

A Chegg mobiliza uma rede de setenta mil profissionais freelancers sediados na Índia. Dividem-se em turnos, tornando o serviço online disponível ininterruptamente. Fornecem o resultado e a resolução de questões apresentadas pelos assinantes em menos de quinze minutos. Tempo mais do que suficiente para fraudar provas aplicadas remotamente.

Essa empresa conta com quase cinco milhões de assinantes e teve receitas de duzentos milhões de dólares no último trimestre. Para Karen Symms Gallagher, especialista em educação, “a trapaça agora é terceirizada internacionalmente, envolve empresas de bilhões de dólares e é impulsionada por capitalistas de risco e investidores de Wall Street.

Como tudo o que se faz no Primeiro Mundo, cedo ou tarde chega ao Brasil, aguardemos que essa expertise não nos surpreenda. Motivo para que o MEC reveja seus critérios de avaliação. Por que não focar mais a extensão, do que o exibicionismo de erudição, calcada em capacidade mnemônica, a forçar o menos dotado de memória a contratar quem faça para ele trabalhos que, em sua imensa maioria, de pouco servem para transformar a convivência em algo mais fecundo e fraterno?

Criatividade condiz muito mais com algo prático do que a elaboração de trabalhos doutrinários que costumam seguir a Lei de Lavoisier, adaptada ao Brasil: nada se cria, tudo se copia.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Opinião/Estadão
Em 19 12 2021



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