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AS MISÉRIAS DO PROCESSO PENAL
Acadêmico: José Renato Nalini
Parece surreal, mas é a realidade nua e crua. O Código de Processo Penal brasileiro é de 1941.

As misérias do processo penal


Parece surreal, mas é a realidade nua e crua. O Código de Processo Penal brasileiro é de 1941. Completou oitenta anos! E continua a vigir. Como se a sociedade brasileira da primeira metade do século passado não tivesse registrado a profunda mutação estrutural que trouxe disrupção em todos os aspectos da convivência humana.

O Chile, sempre mais civilizado do que o Brasil, considera a reforma do processo penal levada a efeito na década de noventa, “A Reforma do Século”. Nosso Parlamento está mais interessado em cuidar de orçamento secreto, de Fundos Partidário e Eleitoral, em modificar – para seus próprios interesses eleiçoeiros – as regras que incidem sobre o sufrágio, do que em seriamente encarar o descalabro que é a Justiça Criminal tupiniquim.

Somos o terceiro país que mais encarcera. Endurecemos a lei penal. Toda produção legislativa traz consigo uma “jabuticaba” ou um “jabuti”, ou seja, mais um tipo penal. Ainda prospera a discussão sobre a redução da maioridade penal. Também rende frutos o aumento de penas restritivas de liberdade.

A verdade é que prendemos muito e prendemos mal. O crime é fenômeno que afeta os humanos dos 15 aos 24 anos. Não são os menos dotados de discernimento e de inteligência que se entregam à ilicitude. Ao contrário: são aqueles que percebem a falácia do discurso oficial. Quem é que hoje acredita que um diploma abrirá as portas do sucesso para um jovem que se sacrificar para obtê-lo?

Ao contrário do Estado, que só atua no sentido de sua perpetuação cada vez mais fortalecida, beneficiando as dinastias que se eternizam no poder, as organizações criminosas cuidam de oferecer perspectivas sedutoras à juventude. A licitude oferece meio salário mínimo, a condição de “auxiliar de assuntos gerais” ou de “aprendiz”, o que significa ser um “quase nada” na estrutura funcional. A delinquência oferece papeis significativos para a mocidade privada de uma educação de qualidade. Remuneração melhor, inveja dos excluídos do sistema, conquista das melhores garotas, prestígio, fama, etc.

No sistema penitenciário, embora a Constituição garanta que o preso não perderá sua dignidade, é a organização criminosa quem cuida da família do encarcerado. Isso garante uma dependência permanente. Não é por outra razão que os conhecedores do sistema prisional o consideram um eficiente recrutador de mão-de-obra para a criminalidade organizada.

Na contramão do que é mais moderno em termos de tratamento ao fenômeno criminógeno, o Brasil continua no medievo. Oferece a prisão como única resposta para um fato que continua presente – e cada vez mais – na vida brasileira. Não leu, ou já se esqueceu, da obra clássica de Francesco Carnelutti (1879-1965), “As misérias do processo penal”, onde o pensador peninsular assinalou: “A justiça humana não pode ser mais que uma justiça parcial; sua humanidade não pode deixar de resolver-se em sua parcialidade. Tudo o que se pode fazer é tratar de diminuir essa parcialidade. O problema do direito e o problema do juiz são uma mesma coisa. O que pode o juiz fazer para ser melhor do que é? A única via que lhe está aberta a tal fim é a de sentir sua miséria: é necessário sentir-se pequeno para ser grande. É necessário ter uma alma de criança para poder entrar no reino dos céus. É necessário, cada dia mais, recuperar o dom do entusiasmo. É necessário assistir, a cada manhã, com mais profunda emoção, ao nascer do sol, e, a cada tarde, ao seu ocaso. É necessário sentir-se, cada noite, aniquilado pela infinita beleza do céu estrelado. É necessário permanecer atônito diante do perfume de um jasmim ou diante do canto do rouxinol. É necessário cair de joelhos diante de cada manifestação deste indescritível prodígio que é a vida”.

Com o atual sistema de recrutamento para as carreiras públicas jurídicas, essa pregação cai no vazio. O que interessa é decorar o enciclopédico acervo de toda a legislação, doutrina e jurisprudência disponível. Carnelutti, há décadas, já tinha a resposta para o embotamento desta província ultrapassada: “Outros dirão que o juiz, para ser juiz, deve realizar certos estudos, superar certos exames, submeter-se a certos controles. Sobretudo, hoje se ensina que, para ser juiz penal, é necessário estudar, além do direito, a sociologia, a antropologia, a psicologia. Certamente, são estudos úteis e inclusive necessários, mas não suficientes. Ante tudo não se deve crer que se possa colocar sobre a mesa anatômica, como se coloca o corpo, também a alma humana. Não se deve confundir o espírito com o cérebro. Certamente, o espírito está condicionado elo corpo e vice-versa; em particular, a psicologia é a ciência que estuda estas relações ; mas além destas, encontra-se o campo que o juiz deve, sobretudo, conhecer; e muito temo que seu conhecimento não ajude nem as Universidades nem os institutos complementares. Narra uma fábula, que li numa revista argentina, que os protestos dos anjos pela criação deste ser absurdo, meio anjo e meio besta, que é o homem, o Criador contestou: o homem não é questão para congressos de filosofia; o homem não é questão que se possa discutir nestes congressos; e teria agregado: o homem é questão de fé no homem. Desde que tive a ocasião de lê-las, faz anos, não me fugiram da mente estas palavras”.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Opinião/Estadão
Em 08 12 2021






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