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A BRECHA CONSERVADORA
Acadêmico: José de Souza Martins
"Tanto o petismo quanto o bolsonarismo resultam da falta de alternativas ideológicas e partidárias que melhor expressem as identidades políticas socialmente possíveis e autênticas do povo brasileiro."

Não faz muito, numa conversação informal sobre o impasse político do momento brasileiro, ouvi de alguém que o país precisa de um candidato de centro que se oponha à direita e à esquerda. Alguém que personifique uma terceira via em relação ao bifrontismo político que nos aprisiona desde que o PT se firmou como partido polarizante do processo político brasileiro. Era ou ele ou mais nenhum. Essa equivocada concepção da política abriu o caminho para a monstruosidade antidemocrática que venceu as eleições de 2018.

Tanto o petismo quanto o bolsonarismo resultam da falta de alternativas ideológicas e partidárias que melhor expressem as identidades políticas socialmente possíveis e autênticas do povo brasileiro. Ou expressem a falta delas no comportamento eleitoral de uma classe média de perfil fragmentário, sem referências sociais determinadas, limitada às amedrontadas urgências do agora.

Se tivéssemos uma estrutura de representação política sem distorções sociais, novos sujeitos políticos, que surgiram no último meio século, teriam se manifestado eleitoralmente de modo diverso. Porém, ideologicamente capturados, eles já vinham sendo diluídos em designações abrangentes e genéricas, em categorias sociais que não são propriamente as suas, identificados no superficial e não no decisivo de seu modo social de ser. Uma falsa consciência autoritária usurpa e define como próprio o que é alheio.

O dilema brasileiro certamente não é o da busca de uma terceira via. É o de construir uma alternativa democrática e autêntica para o autoritarismo que, sob diversas formas políticas, está incrustrado na maioria dos partidos.

A estrutura da sociedade brasileira e a organização política que a expressa estão modeladas para favorecer e multiplicar esse autoritarismo, que é o do mando e da obediência, da renúncia ao que é próprio das personificações das diferentes situações e realidades sociais. Isso nos vem da juridicamente dupla escravidão de nossa formação social, a escravidão indígena e a escravidão africana. As derivadas personalidades formadas nas referências sociais do temer e do obedecer e na única alternativa que as atenua, a do bajular e enganar os que enganam. Ainda é assim na atualidade.

A deformada república oligárquica, instituída por um golpe militar, extinguiu a monarquia polarizada entre o Partido Liberal e o Partido Conservador. Ao menos tínhamos ordem, lembra Alberto Torres, uma referência do pensamento conservador no Brasil. Os dois partidos alternavam-se no poder. O lúcido Euclides da Cunha, com o discernimento de uma vocação de cientista político, assinalou que no Império os liberais propunham inovações sociais e os conservadores, adaptando-as, as executavam em seus governos e mandatos. Nenhum dos dois partidos tinha o monopólio das decisões. Éramos autênticos na unicidade do duplo.

A Lei Áurea foi promulgada num governo conservador, e não num governo liberal, para executar um projeto liberal, o do trabalho livre.

Tudo sugere que em boa parte a atual crise política brasileira decorre da falta de um partido conservador, no correto sentido da palavra, da tradição e da doutrina. Conservador autêntico não significa nem reacionário nem de direita. Para que por meio dele se expressem politicamente aqueles muitos que, na falta dessa alternativa, caíram na armadilha de uma extrema direita ignorante, oportunista e politicamente incapaz. A que desmonta as instituições para impor a ordem social e o poder das improvisações.

O nosso residual conservadorismo doutrinário vem de uma grande tradição européia, à qual Fernando Henrique Cardoso se referiu em artigo publicado na Folha de S. Paulo, em 1986, quando lembrou que “a posição conservadora costuma ter racionalidade e consistência”.

Sendo ele grande conhecedor da obra do sociólogo húngaro Karl Mannheim, nessa afirmação tem em conta o referencial estudo desse autor sobre “O pensamento conservador”. Nele, Mannheim estabelece as conexões entre as situações sociais dos diferentes grupos, categorias e classes da tradição pré-moderna e as ideias por meio das quais podem expressar seu modo de ser, de conceber e de interpretar a realidade. E assim definir suas próprias necessidades sociais.

Aliás, algumas referências fundamentais do pensamento de esquerda procedem da tradição conservadora, a começar da premissa teórica de totalidade e nela a ideia da poesia e da utopia do possível. O que depende, no entanto, da superação do sectarismo ideológico dos seus mediadores e intérpretes, que desconhecem o lugar das ideias, pela mediação dialética da ciência e do retorno à práxis da mudança social, muito diversa e mais completa do que a mera ação eleitoral.


Publicado em Eu& Fim de Semana, jornal Valor Econômico, Ano 22, nº 1.092, São Paulo, 26 de novembro de 2021, p. 4.



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