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RECORDAR É SOFRER
Acadêmico: José Renato Nalini
Somos habituados a esquecer rapidamente as coisas que nos incomodam. Com isso, negligenciamos a urgência de tomar atitudes que possam exatamente evitar que elas ocorram.

Recordar é sofrer


Somos habituados a esquecer rapidamente as coisas que nos incomodam. Com isso, negligenciamos a urgência de tomar atitudes que possam exatamente evitar que elas ocorram.

Um passeio pelo que aconteceu recentemente no Estado de São Paulo, tradicionalmente um território incólume a catástrofes naturais, talvez suscite uma reflexão das mentes sensíveis. Estas não são muitas, senão o estágio em que se encontra o ambiente bandeirante seria outro.

Pela segunda vez, tempestade de poeira encobriu cidades, assustou moradores nas regiões de Presidente Prudente e Araçatuba. Na segunda vez, o fenômeno se fez acompanhar por rajadas de vento forte e pancadas de chuva. Uma vítima, ao menos, foi ferida com a queda de uma telha. Mas muitas cidades ficaram sem energia.

Isso já havia atingido Ribeirão Preto e Franca. O fenômeno tem nome: “haboob”. É o que resulta de ventos fortes em solo seco. Levanta-se a poeira e pode chegar a até dez quilômetros de altura. Não ocorria no Brasil, quando havia cobertura vegetal nativa. Mas o depauperamento da mata para servir à monocultura e depois o exaurimento da terra, que já não serve para as próximas “socas”, deixou um chão de deserto. Por que essa tempestade de poeira tem nome? Em árabe, “haboob” significa “destruidor” ou “o que vagueia”. Só ocorre em regiões áridas do planeta. O vento só levanta poeira quando encontra um solo ressequido, com resquícios de queimada e vegetação seca.

É evidente que os ufanistas, que sustentam que o Brasil tem mais área verde do que a sua dimensão territorial – fazendo uma soma daquilo que consideram reserva florestal, áreas demarcadas, num exagero que só engana quem quer ser enganado – vão dizer que isso é natural. Agora é, porque somos especialistas em produzir desertos.

Perguntem a quem teve casas destelhadas em Penápolis, onde árvores foram arrancadas – as poucas que sobraram e que não resistiram, porque isoladas – e fios elétricos rompidos. Em Presidente Prudente aconteceu o mesmo, com inúmeras vidraças quebradas. Até o aeroporto viu quebra de vidros no saguão de embarque. Um caminhão tombou na Raposo Tavares, envolvido pela poeira e vento violento. As rajadas de mais de oitenta quilômetros por hora danificaram também o Recinto de Exposições.

Dracena foi outra cidade que sofreu. O seu Centro Dia do Idoso foi atingido, uma funcionária ficou ferida. Regente Feijó e Teodoro Sampaio idem. Da mesma forma, Pereira Barreto. A segunda tempestade de poeira matou quatro pessoas. Um homem foi atingido por um muro que caiu com a força do vento. Três outras pessoas morreram envolvidas pela nuvem de fumaça e fogo que se levantou quando o vento chegou a um pasto em chamas, em Santo Antonio de Aracanguá, região de Araçatuba.

Uma fazenda em que havia fogo, viu um trator ser carbonizado e vinte bois morrerem, queimados ou asfixiados pela fumaça. Outra pessoa desapareceu no rio Paraná, em Presidente Epitácio, depois de sua embarcação virar durante a tempestade. Outro que estava desaparecido chegou a ser salvo pela Marinha. Dezenas de barcos do Rio Paraná viraram com a força do vendaval.

Isso não teria acontecido se a inteligência humana tivesse preservado ao menos uma parcela da mata que cobria toda São Paulo e que foi dizimada, pela pressa na obtenção de lucro. Terrível concluir que reparadas as residências que foram destelhadas, restabelecidas as comunicações interrompidas, enterrados os mortos, tudo volte ao “normal”. Só que o normal, se não houver uma efetiva conversão dos seres racionais para que cuidem melhor da natureza, será a repetição de “haboobs”, cada vez mais violentos.

Seria bom acreditar que as Prefeituras das cidades maltratadas pela natureza que elas primeiro maltrataram, se redimisse mediante uma consequente cruzada para reflorestar. É conciliável o agronegócio, a quem se atribui a “salvação da lavoura” da economia brasileira e a preservação. Sem esta, até o agronegócio estará prejudicado. A crise hídrica vai trazer prejuízos incalculáveis e continuará, a cada dia mais intensa, pois o regime de chuvas se viu impactado pelo desmatamento da Amazônia e pelos incêndios do Pantanal.

Todos sabem como fazer a água voltar. A “fábrica de água” se chama árvore. Sem ela, não se espere por chuva. Nem se culpe São Pedro, por uma conduta insensível e deliberada de todos quantos desmataram, tornando o solo seco, árido, desértico. O fenômeno que já se repetiu tende a ser rotineiro. Tomara que, em algumas consciências, a lembrança desse infausto acontecimento gere uma reação. Não é a natureza que vai agradecer. É a humanidade. Esta precisa aprender a conviver com o ambiente, do qual faz parte e sem o qual, poderá deixar de existir muito antes do que possa imaginar.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Opinião/Estadão
Em 17.10.2021



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