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A LINGUAGEM DOS SENTIMENTOS
Acadêmico: Gabriel Chalita
O passado é terra de nascimentos. De pessoas. De encontros. De despedidas.

Vivi o dia nas histórias da minha tia. Dia pleno que rompe as cronologias e que coloca todos os tempos na linguagem dos sentimentos.

O passado é terra de nascimentos. De pessoas. De encontros. De despedidas.
Casou minha tia depois do desmanchar da juventude. Era mulher decidida ao solteirismo quando uma amiga, em prontidão para morrer, entregou o pedido, que casasse minha tia com o marido que, em pouco, enviuvaria.

Sem pensar em desobedecer ao desejo, aceitou. E enfeitou os dias com um amor maduro. Viveram de cuidados, de gestos brandos, de presente. Depois de ele se despedir,  mudou ela para viúva o estado
civil. 

Conto eu sobre os sobressaltos que vivo. Que vive a humanidade. Ouve ela com os ouvidos experimentados pelos sons dos barulhos e do silêncio. Gosto das suas mãos delicadas acariciando minhas preocupações. Lutamos lutas decididas por outros. Tememos perder a batalha imaginária. Perdem todos quando não usam as mãos dadas para o caminhar, mesmo que mais lentamente. Os passos da minha tia combinam com suas ausências de pressa. "Que bonito eles cantando",  explica ela os passarinhos na janela, "Eles gostam da nossa companhia", prossegue com sua simplicidade orgulhosa. 

No almoço, do dia pleno, comemos a saudade. Fotos espalhadas pelos cômodos da casa registram amores que não mais vivem conosco. Só na caixa que ressoa beleza dentro de nós.

Brinca minha tia com as rugas. Uma a uma foram chegando, enquanto o tempo ia partindo. O tempo que temos, e que é pleno, é Kairos. Não sobra e não falta. É o presente de um dia amanhecendo sem pressa nem preguiças.
 
Minha tia é a infância renascendo em mim. Lia ela livros cujos palavras ainda não significavam. Eu passava os dedos, enquanto ela dizia as histórias. E eu pedia mais. Se havia tristeza na história, eu sentia. Se havia alegria, também. De história em história, fui escrevendo a minha. O verdume das frutas explica que ainda falta. A lagarta ainda há de ser borboleta. Tudo ontem era promessa. E tudo poderia não ser. Ou quebrar. Ou, diz minha tia, sobre uma velha amiga japonesa, Kiome, que falava sobre uma arte de restaurar cerâmicas quebradas. Há força na imperfeição, decido eu.

"Kintsugi, lembrei" comemora ela. Há um vaso bonito que minha mãe guardava como lembrança da mãe de sua mãe. E há flores que nos perfumam por enquanto. Que hoje estão. Que amanhã não estarão. Olho para o vaso com respeito. E, ao lado dele, encontro um candelabro que, tantas vezes, vi emprestando firmeza para as velas iluminarem.

Deito o cansaço no colo da minha tia e fecho as preocupações que carrego sem muita explicação.  Adormeço e sonho o sonho bom do amor. Quando acordar, será hora de partir. Primeiro, um bolo de cheiro de tantas mãos que prepararam o meu alimento.  Depois, a partida física, com as lembranças agradecendo uma pausa na quentura das cansaços. 

Acordo com o barulho dos passarinhos e com minha tia respirando paz. Desperdiçar um dia desses?



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