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A POEIRA DA DERROTA
Acadêmico: Gabriel Chalita
É como se me engasgasse. Vem uma prisão de dentro de mim que me escurece o instante. É apenas um instante, eu sei. Só não sei como fazer para não dar valor ao que valor não tem. E foi sempre assim.

É como se me engasgasse. Vem uma prisão de dentro de mim que me escurece o instante. É apenas um instante, eu sei. Só não sei como fazer para não dar valor ao que valor não tem. E foi sempre assim.

Desde muito menino, eu jogava xadrez com meu pai. E ele percebia os meus incômodos com a proximidade da derrota. E, então, trazia o erro para que eu pudesse vencer. Talvez tenha sido esse o seu erro. Eu não deveria vencer sempre. Ninguém vence sempre.

Fui me obrigando a vencer. Das olimpíadas escolares aos jogos descontraídos em família. Para mim, era sempre muito tenso. E quando ouvia, "O Pedro vence sempre", aumentava a minha necessidade de provar que estavam certos. Enquanto eles riam, eu prestava atenção. Enquanto eles se divertiam, eu comia partes de mim para jamais perder.

E se perdesse? O que aconteceria? Seria menos amado? Seria menos valorizado? Não sei. Sei que, até hoje, tenho que brigar com as brigas internas que me retiram o prazer de qualquer instante para provar aos outros que, em mim, não mora a derrota. Que monstro é esse? Que mandamento criei em mim mesmo de competir sem pausas? E eu sei que cooperar é tão mais bonito.
Vez em quando, em momentos de lucidez, ponho-me a perscrutar o sofrimento que me causo. Observo os vencedores que se fazem perdedores por fraudarem a vida. É assim na política, é assim nos negócios. Um dia, o pódio da vitória; no outro, a vergonha dos meios obtidos para chegar à vitória. Um dia, o discurso do vencedor; no outro, o desmascarar das hipocrisias que levaram à vitória.

A batalha da vitória mora em planos mais profundos do que um tabuleiro de xadrez. Ou do que uma eleição. Ou do que um negócio fechado com algum talento. O vencedor inicia sua jornada dentro dele mesmo. Quando diz "não" ao incorreto, ao desonesto, ao injusto. Quando promove um levante contra os seus sentimentos menores que vivem em busca de aplauso. Os maiores sentimentos respiram sem cobranças, e nos remetem ao melhor que somos. Digo isso para mim mesmo com a justa finalidade de aprender.

Meu pai ainda joga comigo e ainda ri do meu nervosismo. Já sou pai e educo os meus filhos para que separem o necessário do resto. Para que não se prendam às teias em que me perdi. Converso sobre isso com minha mulher, que ameniza meus exageros. Ela limpa as nuvens que me escondem de mim, dizendo que o fato de eu reconhecer o que mora em mim já é uma chave para que eu abra os dias que virão, para que eu desconsidere o desimportante, para que eu respire sem o medo da poeira da derrota.

Minha mulher é a vitória do romantismo, é a brisa que quebra as quenturas que me quebram. Os seus ditos são despretensiosos. Nada em excesso. Costura ela, em mim, os rasgos que fiz na minha alma serena. E me traz as delícias de acalmar a vida com gestos simples. Na nossa casa, mora uma roseira que, invariavelmente, ela cuida dizendo que ali ela respira Deus. E faz a oração do amor com uma convicção de vencer os ódios e as indiferenças do mundo. Um dia, me disse sorrindo que essa é a única vitória que compensa.

Meus filhos brincam no quintal e se sujam sem medo. Fico feliz de ver que não se trancam em jogos de máquinas. Gostam do sol e não se importam com as derrotas. Carmen, minha mulher, tenta me emprestar lentes de amor, para que eu veja que dei certo, e que a oração dos meus amanheceres deveria ser a oração da gratidão. Não acredito nas ingenuidades de que alguém muda de uma hora para outra.

Brincamos, esses dias, de uma antiga brincadeira de criança. Esconde-esconde. E eu perdi. E ri muito do lugar em que minha mulher se escondeu e do jeito que meu filho caçula revelou a descoberta, quando viu os seus olhos. O dia estava indo embora e eu estava em paz. A poeira que me tomava era apenas a do fundo do quintal em que logo fui descoberto.

Fiquei com vontade de ligar para o meu pai e dizer que fiquei em quinto lugar na brincadeira, dos cinco que brincavam. Minha mulher, o amor da minha vida, nossos três filhos e eu. Amanhã, eu conto para ele. E, se tiver maturidade, perco no xadrez e ainda dou um sorriso de libertação.


Publicado no dia 26 de julho, no jornal O Dia (RJ).




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