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TENHO MEDO DE MIM
Acadêmico: Gabriel Chalita
"Cheguei a essa conclusão. Sozinha."

Era sozinha, até Glauco aparecer. Fiquei viúva cedo e nunca mais quis saber de divisões na minha alma. Meu marido havia sido um homem bom. Calado, mas bom. Morreu de acidente, pouco depois de nos casarmos. Não tivemos filhos. Fiquei derrotada, no início, e depois fui me reerguendo com meu trabalho. Sozinha. Com amigos, mas sozinha.

E o tempo foi escapulindo e, no meu aniversário de 50 anos, conheci Glauco. Em uma praça aqui perto. Na fila da pipoca. Eu, distraída, o atropelei. Ele sorriu e me deu lugar na fila. Eu, constrangida, me desculpei. Ele sorriu. E fez um gesto galanteador. E, quando fui pagar a pipoca, ele não permitiu. E eu permiti que ele fosse chegando.

Em pouco mais de seis meses, nos casamos. O luar varria a entrada da Igreja, e as flores nos perfumavam. Dançamos com a leveza necessária, naquela noite, e fomos amar. E decidimos que viveríamos na minha casa. Glauco era, também, viúvo. Os cinco filhos já viviam livremente, dependendo, apenas, dos afetos do pai e nada mais.

Acontece que minha casa é organizada. Exageradamente organizada. Tenho as minhas manias. Quem não as tem? E Glauco não sabe. E não precisa saber. Ele abre o espelho do banheiro para pegar a escova de dente e deixa a marca do dedo como lembrança. Eu limpo, claro. E, no dia seguinte, a marca está lá, me olhando desafiadora. Suas roupas ficam em exposição. Eu recolho discretamente. Quando acorda à noite, vai ao banheiro do nosso quarto. E faz barulho. Eu, quando acordo, vou ao outro banheiro que há na casa para não causar nenhum incômodo. Já pensei em explicar isso a ele. Desisti.

Vez em quando, ele resolve me ajudar na cozinha. Não gosto, mas permito. Ele é pouco cuidadoso. Ontem, ele derrubou leite na gaveta de talheres. Eu olhei, queimei por dentro, e disse que tudo bem, entre sorrisos. Não quis limpar, enlouquecidamente, para não parecer que sou assim. Mas sou. Não consigo sair de casa sem deixar tudo limpo e organizado. E é melhor que eu faça. Embora eu já tenha explicado que há uma esponja para copos e taças, e outra para o resto, ele confunde. E eu tenho que desinfetar depois. Eu pedi para mudar de horário. Para chegar um pouco mais tarde ao trabalho para lavar a louça do café. E para limpar o espelho. E para ajeitar as coisas dele. Se eu saio antes, fica tudo em desarmonia.

Sim, estou gostando da vida ao lado dele. É bom ter alguém. Gosto de dormir abraçada, embora fique tentando me convencer de que ele lava a mão, quando vai ao banheiro durante a noite.

Há um quadro que ele me trouxe de presente, mas que não combina com os quadros que tenho. Ele sugeriu pendurar em desalinho. Brincou, dizendo que um pouco de assimetria faz bem. Eu concordei sorrindo e escondi o quadro. Os homens costumam se esquecer dessas coisas.

Os filhos gostam de mim. Dizem que é bom ver o pai novamente acompanhado. Acompanho cada passo dele na casa e vou arrumando o que sai do lugar. Às vezes, acho que ele percebe e pensa que é melhor olhar pela janela e lascar um comentário ou outro, que não nos ofenda. E falar sobre o tempo. Ou sobre o frio que não demora a vir.

No último inverno, eu estava sozinha. Era bom. Era eu mesma. Com outras manias, inclusive, que não revelo. Agora, ele está. Antes tinha medo de ocuparem o que era meu, hoje tenho medo de que ele parta. Que não consiga conviver, que eu suje suas intenções futuras de permanecer. Justo eu que sou tão limpa.

Tenho medo de mim. De uma reação mais áspera a uma ação qualquer, que pareça inocente, mas que me roube a tranquilidade. Com o meu primeiro marido, morávamos sozinhos. Hoje, os deixados do tempo moram conosco. Gosto de deixar o lençol cuidadosamente enfiado no colchão. Ele deita e tira. Disse, em voz alta, que não gosta de sentir os pés presos. É tão bom quando ele esfrega os seus pés nos meus e sussurra delícias com que eu já havia me desacostumado.

Hoje, vou fazer uma massa para jantarmos. Vou preparar tudo antes que ele chegue e se proponha a me ajudar. Vou fazer uma torta de maçã, que ele adora. Eu também. Servida quente, com um pouco de sorvete. Antes que o inverno chegue.

Publicado no dia 02 de junho, no jornal O Dia (RJ).




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