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O HOMEM AÉREO EM “A METAMORFOSE” DE FRANZ KAFKA
Acadêmico: Luiz Carlos Lisboa
introdução ao debate sobre "A Metamorfose", de Franz Kafka, escrito pelo acadêmico Luiz Carlos Lisboa para o encontro do Clube de Leitura da Academia Paulista de Letras, realizado em 27 de outubro de 2016

O primeiro ponto a ser considerado quando se tem em mãos A Metamorfose, de Franz Kafka, é o fato de que se trata de um enigma a ser decifrado. Kafka deve ter conhecido a frase de Shakespeare no Rei Lear, sobre o “mistério das coisas que estão sempre aí, diante de nós, esperando um significado”. Na ficção que vamos examinar, o absurdo ocupa um lugar de destaque, e se agita em torno dela, utilizando a nomenclatura do escrivão e a minúcia do joalheiro. O resultado é uma narrativa espantosa. Esse mistério, o do homem que acorda transformado num inseto de proporções humanas, esconde alguma coisa maior do que a mera ficção científica ou apenas a história de terror. Perfeito na construção do personagem Gregor Samsa, o conto é narrado em tom cartorial e de forma realista, por alguém que se arrasta como um animal em seu covil, mas é também um observador do mundo tão interessado quanto nós, leitores do livro.
Em todos os tempos houve sempre gente que tomou a si a tarefa, apaixonante e imperiosa, de decifrar o mistério de estar vivo. Em sua obra, Kafka se queixa de não entender o mundo, ao mesmo tempo em que lamenta se sujeitar aos seus valores, e finalmente ao seu julgamento. Em outro livro seu, O Processo, ele conta uma vez mais a história do homem colhido no absurdo em que se viu lançado. Seu personagem não é um desconhecido qualquer, ele é de fato cada homem no mundo, saiba disso ou não. Para Kafka, somos potencialmente esse prisioneiro que se pensa livre mas que é condenado por critérios que regulam o viver e morrer, que premiam e castigam indistintamente, sem levar em conta a opinião de sua presa.
No caso particular do conto A Metamorfose, as interpretações que o cercam se multiplicaram mundo afora desde que foi publicado, e se espalhou consagrado pela curiosidade popular. Para dar ideia dessa multiplicidade, uma bibliografia recente do autor registra 189 títulos de ensaios e exegeses, dedicados exclusivamente à obra. Tais interpretações variam de teológicas a sociológicas, e viajam pela filosofia e a psicanálise freudiana a cuja teoria o próprio Kafka se referiu com ceticismo e dissabor, ele que foi contemporâneo de Freud.
Os romances, contos, diários e fragmentos de Kafka dão conta da efervescência e ao mesmo tempo da solidão que reinaram sempre na vida e na alma do autor. A Metamorfose, o único trabalho que ele se permitiu divulgar desde que o terminou em 1912, publicando-o dois anos depois, não contém apenas suas preocupações mais profundas sobre o aparente absurdo de estar no mundo, mas projeta de modo singular a ideia de que muitos de nós, com frequência, nos tornamos, aos poucos, aquilo que os outros esperam ou desejam de nós. Somos, enfim, personagens moldados pela cultura dominante, trabalhada por nossos antepassados. Só uns poucos resistem a isso. Nos seus “Diários” (1910-1923), Kafka fala sobre essa resistência: “Cada homem é singular e chamado a agir em virtude de sua singularidade. É preciso, contudo, que tome gosto por sua singularidade. Em minha casa se trabalhava para que minha singularidade desaparecesse”. Essa era a causa da sua revolta.
Logo na sua primeira página, A Metamorfose nos mostra como Gregor despertou um dia com uma imagem abominável de si mesmo aquela nascida nas críticas de sua família. Para ele havia algum conforto na sua mutação, uma vez que de um inseto repulsivo não se espera a obrigação de sustentar a família com o produto do seu trabalho. Quando escreveu o conto, o moço Franz Kafka desejou que seu pai o lesse um dia, a fim de se descobrir como o autor das recriminações ao filho. Mas não, o velho Hermann limitou-se a julgar a narrativa uma tolice, que não merecia nem ser lida até o fim.
No seu célebre estudo Kafka: Pró e Contra, o filósofo e ensaísta alemão Günther Anders fala da mistura de ateísmo e religiosidade em Kafka, e do seu distanciamento do mundo. Anders mostra ali um Kafka obstinado, sempre à espera de uma revelação que não ocorre jamais, e que explicaria a vida humana. Anders chama a posição kafkiana em face da vida de “ateísmo envergonhado”. Mas para Modesto Carone, o principal tradutor brasileiro de Kafka, o autor tcheco era religioso a seu modo. E Carone cita a propósito Otto Maria Carpeaux, que foi apresentado a Kafka em Viena. “O deus de Kafka”, diz Otto, “faz estremecer os fundamentos do céu e da terra, e esses terrores e esplendores ele escondeu nas suas amostras da vida cotidiana. Sua obra é toda feita de parábolas”.
Assim, a obra geral de Franz Kafka se abre com cautela para o absurdo de estar vivo, trazendo nas mãos o nada, mas na sua essência essa obra renova o ímpeto de buscar um sentido, seja lá qual for, exatamente como o Sísifo do mito grego. Os heróis kafkianos (bem como os clássicos da Grécia) experimentam de tudo, mas suas mãos continuam vazias. O personagem do mito carrega a pedra montanha acima, e ela sempre volta a rolar, ao fim de tanto esforço. Socialismo, ateísmo, anarquismo, sionismo, obsessão literária, várias profissões burocráticas a tudo Kafka se devotou com a mesma determinação de Sísifo, e de tudo desistiu, para em seguida recomeçar.
Mas nada Kafka tentou com mais empenho do que conquistar o amor e a admiração do pai, o velho Hermann, odiado e amado pelo filho como no modelo freudiano de conflito doméstico, e tal como em Freud, no respectivo sentimento de culpa. Hermann julgava o filho um Luftmensch, expressão iídiche que significa “homem aéreo, alienado, cabeça oca”. Mas a palavra se refere também a uma pessoa incômoda, que rouba a paz de um lar dominado por um chefe que ama as certezas e abomina as fraquezas. O fato é que Gregor Samsa e Franz Kafka, personagem e autor, nunca se sentiram incluídos no meio familiar e -- por que não dizer? -- na vida do mundo. No entanto, sua obra estabeleceu um contato quase elétrico com o mundo inteiro quando seu autor já não existia.
Pois Franz, viajante solitário em seu tempo, em meio a suas dores inventou uma forma de se libertar e de não pertencer a nada e a ninguém. Não que tenha deixado de esperar. Na sua ficção, seus personagens aspiram a uma comunicação com o mundo que afinal nunca se completa, é verdade, mas a teimosia em tentar gera uma nova energia que afinal é --- se isso é possível uma negação do nada.
Em A Metamorfose, Gregor Samsa é descrito como se tivesse acordado num novo corpo, mas ele vive de fato no mundo como se tivesse aceito uma outra imagem de si mesmo, forçada pela crítica de terceiros. As censuras que lhe faziam agora tinham procedência, e ele as aceitava, rastejando vida afora. E como um inseto repulsivo não tem direitos, tudo que lhe restava então era aceitar calado o epíteto de Luftmensh, e comportar-se como um acusado confesso, alguém que se deseja que morra para ser varrido da sala de jantar.
Na primeira página da obra, o anti-heroi Gregor Samsa desperta para a sua insignificância, sua esquisitice, sua estranheza perante o mundo, ou o que ele mesmo chama nos seus “Diários” de singularidade. Agora só era preciso acomodar-se a essa nova realidade, vendo-se como os outros o viam. O pai Hermann sustentava a ideia de um mundo onde conviviam homens de valor e homens inúteis, e onde os segundos estavam sobrando. Na mesma época, muito próximo dali e sob a mesma mentalidade de rejeição, o nazismo começava a nascer.
Encarnado-se nesse personagem, Gregor Samsa mostra a sua singularidade ao gerente que o procura em casa, aos pais, à irmã, à arrumadeira, a todos que o tratavam como a um monstro. Em que consistia sua metamorfose, afinal? Antes da transfiguração, o personagem era daqueles que procuram um sentido para as coisas. Já como inseto, não procurava mais. Identificando-se com um grande ser repugnante, agora era só sobreviver. De um ser abominável não se esperam deveres, obrigações, reformas. Samsa agora está livre.
Décadas depois de Kafka, no seu O Mito de Sísifo Albert Camus nos diz estar profundamente ligado àqueles que não param de se interrogar, ainda que sem obter qualquer resposta, num mundo onde o homem é jogado sem qualquer consulta ou explicação. Não é que sejamos apáticos, dizem ambos, Kafka e Camus, cada qual na sua linguagem. O fato é que nós não conseguimos nos definir interiormente, por mais que nos penduremos em dogmas, ideologias e filosofias. Quando não nos apegamos logo a uma crença ou a uma esperança básica, é porque no fundo duvidamos das certezas. A dúvida é a dor maior do homem, e é também motivo da antipatia geral, de parte dos que a consideram fraqueza. Kafka e o pai estavan fadados ao desentendimennto.
O homem absurdo de Camus nós todos, segundo ele -- atirados num mundo desprovido de sentido, (abre aspas) “cultivamos o hábito de viver antes de adquirir o de pensar” (fecha aspas). Essa é a essência do “homem aéreo”, esse é o Gregor Samsa de A Metamorfose, que busca mas não define seu alvo, alguém que se poderia chamar de vago, inquieto, abstrato, alienado, conforme a sua sede de verdade. Quando se observa plenamente, o homem comum hesita em confiar, porque evita escolher. Em carta à namorada Felice, em novembro de 1912, diz Kafka: “Escrever mal, talvez, mas enfim escrever, se não quiser me entregar ao desespero completo”. Ele só tinha certeza desse permanente estado de espírito, e de nada mais. De todo o resto ele duvidava. Em outra carta, também a Felice, ele se queixa: “Só escrevo agora o estritamente necessário, bastante para suportar o dia seguinte”.
Para si mesmo, Samsa, naquela manhã havia deixado de ser o homem que busca uma revelação, e a procura sempre. Talvez tivesse conhecido a frase de Goethe “Feliz é o homem que parou de procurar”, mas tudo indica que não se deteve nela. Ele agora queria apenas acomodar-se no seu canto e garantir a comida do dia seguinte o que era, uma vez mais, a busca de alguma coisa. Como qualquer animal, qualquer inseto. Olhando autor e personagem mais de perto, vemos neles a mesma singularidade de Sísifo, levando montanha acima a pedra que depois vai rolar de novo, montanha abaixo.




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