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UM HOMEM CHAMADO RENZO
Acadêmico: José de Souza Martins
Texto escrito para um livro em homenagem a Lorenzo Moroni, líder sindical católico, um valoroso defensor dos direitos humanos, a ser publicado em sua memória na cidade de Albino, em Bérgamo, Itália.

Conhecer Renzo Moroni e o ativo grupo da Operazione Terzo Mondo, de Albino, em novembro de 1988, foi das melhores coisas de minha vida de pessoa voltada para as questões sociais. Linda Bimbi, da Fondazione Internazionale Lelio Basso per il Diritto e la Liberazione dei Popoli, me havia recomendado a Renzo para que ali fizesse uma palestra sobre crianças sem infância no Brasil, tema de uma pesquisa que eu realizava na época. Foi uma grande e boa surpresa conhecer Albino, em Bergamo, uma cidade mobilizada em torno das questões humanitárias, que educa suas crianças e seus jovens para a disponibilidade em favor da condição humana.
Renzo e Angelo Calvin me esperavam no aeroporto de Milão. Acolheram-me com um típico capote verde, alpino, de inverno do Norte da Itália. Mais do que abrigo para o frio já intenso, esse capote abrigou-me durante anos como uma espécie de manto de esperança, um símbolo de fraternidade e de generosidade. Em minhas peregrinações para expor os resultados do meu trabalho e sensibilizar os que se inquietam com as diferentes modalidades de injustiça e de violação dos direitos humanos, encontrei naquele capote a lembrança do grupo de Albino e o calor que me animou a ir adiante em muitas ocasiões. Por estar vestindo o capote, certa vez ouvi, na Inglaterra, um pai dizer ao filho pequeno, que me olhava surpreso: “That man is an Italian gentleman”. O capote era também o conforto de uma identificação com gente que enche de esperança o gênero humano.
Retornei a Albino em várias ocasiões, seja para falar na Sala Cívica seja para fazer largas exposições às crianças e aos adolescentes da I.T.C. Oscar Romero: em 1991, em 1992, em 1994, em 1996. Nesse período, Renzo Moroni e a Operazione Terzo Mondo empenharam-se em conseguir recursos para a Casa Vida, de São Paulo, uma instituição organizada pelo Padre Júlio Lancelotti para abrigar crianças órfãs, aidéticas, filhas de pais falecidos em consequência da Aids.
Em 1996, fui designado pelo Secretário Geral das Nações Unidas para fazer parte da Junta de Curadores do Fundo Voluntário da ONU contra as Formas Contemporâneas de Escravidão. O pequeno grupo de cinco pessoas, uma de cada continente, tinha a tarefa difícil de convencer governos a contribuírem para o Fundo, criado pela Assembléia Geral, com o objetivo de reunir meios que permitissem às vítimas da escravidão apresentarem suas denúncias e suas demandas ao Grupo de Trabalho da Comissão de Direitos Humanos da ONU, composto dos embaixadores, que anualmente se reúne em Genebra. Tarefa difícil porque os países ricos raramente têm demonstrado algum interesse pelo problema e os demais países quase sempre estão na lista dos denunciados. A última coisa que querem é dar vida às denúncias que podem atingi-los.
Meu primeiro contato com os embaixadores, em Genebra, foi decepcionante. No encontro com eles, que a Junta promove em seu último dia de reunião, geralmente uma sexta-feira, a decepção se confirmou. Apareceram quatro ou cinco diplomatas e um número bem maior de jornalistas e representantes de organizações não-governativas interessados no assunto. Dois jovens jornalistas americanos nos disseram que dificilmente poderíamos contar com os governos para obter os meios de que necessitávamos para levar adiante o programa da ONU contra a escravidão. Só excepcionalmente os governos contribuiriam, como ocorreu com a França e o Japão. E apresentaram as várias razões pelas quais os governos resistiam a esse apoio material. Sugeriram que tentássemos obter o apoio de grupos e movimentos da sociedade civil nos diferentes países. Mais sensíveis e organizados, provavelmente abririam o caminho que poderia até mesmo sensibilizar governos.
Pensei, imediatamente, em recorrer a Renzo Moroni e ao grupo de Albino. A resposta foi instantânea. Retornei a Albino para falar às crianças e aos adolescentes do Istituto Oscar Romero, sempre disponíveis para ouvir e para fazer perguntas inteligentes e preocupadas. Uma das sugestões foi a de que fizessem um jejum simbólico anual, economizando o dinheiro gasto em refrigerantes e doces, para organizar um fundo escolar contra a escravidão, depositando o dinheiro na conta das Nações Unidas em favor do programa contra a escravidão. Decidiram aproveitar, anualmente, a festa de Santa Lúcia para mobilizar os pais e a comunidade e reunir os recursos nesse sentido. Os estudantes fizeram questão de comparecer ao banco com os professores que, em seu nome, iam fazer o depósito do equivalente a mil dólares. Além disso, decidiram escrever ao Papa João Paulo II, convidando a Igreja a juntar-se a eles, fazendo sua própria contribuição.
O impacto em Genebra foi intenso. Não só pelo dinheiro dos jovens de Albino, superior ao que, relutantemente, era o da contribuição de vários países. Mas também pelo envolvimento do Vaticano. No ano seguinte, o representante da Nunciatura Apostólica, um jovem padre diplomata, se fez presente na reunião da Junta em Genebra. Uma doação do Papa, também de mil dólares, passou a ser feita anualmente. O próprio núncio, um simpático arcebispo vinculado à Pia Sociedade Missionária de São Carlos, dos Padres Scalabrinianos, se fez presente na reunião, conversou longamente comigo e me expôs a determinação do Papa, motivado pelo apelo dos jovens de Albino.
Os alunos do Istituto Oscar Romero haviam manifestado interesse em comparecer à reunião da Junta, em Genebra, como era de seu direito, já que contribuintes do Fundo da ONU contra a escravidão. E assim o fizeram. Viajaram durante a noite e nas primeiras horas da manhã chegaram ao Palais Wilson, onde estávamos reunidos, pouco depois do início de nossa sessão, quando o representante da Embaixada da Índia fazia veemente discurso contra a nossa comissão e o programa da ONU de denúncia da escravidão. A Índia era frequentemente denunciada pelo uso do trabalho escravo, especialmente a escravidão de crianças empregadas na fabricação artesanal de tapetes, vendidos a preço de ouro nos países ricos. De repente, as portas se abriram e os jovens de Albino entraram no salão de reuniões e ocuparam todas as cadeiras ao redor da grande mesa de conferências. Os poucos diplomatas presentes arregalaram os olhos, o orador interrompeu o discurso. Um dos alunos do Istituto Oscar Romero pediu a palavra e fez um discurso em inglês apelando ao corpo diplomático para que apoiasse o programa da ONU contra a escravidão como eles próprios estavam apoiando. Fez um veemente discurso exatamente oposto ao do representante da Índia. Algumas pessoas se sentiram envergonhadas.
Terminado o discurso, retiraram-se. O representante da Índia não quis continuar o que estava dizendo quando os jovens entraram no salão. O espírito humanitário da população de Albino e da Operazione Terzo Mondo, levado pelos estudantes do Oscar Romero, estava lá. No sorriso dos jovens era indisfarçável a presença de Renzo Moroni.





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