MEMÓRIA
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A SEDE PRÓPRIA. — SONHO E REALIDADE
Acadêmico: Academia
“EM QUE CONSISTIA O SONHO de Alcântara Machado? Em ver a Academia construída no Largo do Arouche, precisamente no local onde ela ora se apruma."

São palavras de René Thiollier no seu livro de memórias e que resumem a história da Academia Paulista, desde os seus primórdios, sem teto onde acolher-se, até à campanha vitoriosa de um pugilo de idealistas para a realização daquele sonho. A seguir, passa a contar o memorialista como se comportara Alcântara Machado, desde que soube da existência daquele próprio do Estado, de localização ideal no coração mesmo da cidade. Pelas suas condições materiais, de prédio antigo, teria de sofrer unia reforma radical para nele instalar-se comodamente qualquer repartição do Governo; ou ser demolido, para levantar-se no mesmo terreno um edifício moderno e mais de acordo com a sua localização privilegiada. Vinte e oito metros de frente, por quarenta de fundo! Que maravilha! Era o que repetia Alcântara Machado, nos seus delírios de grandeza. E insistia no conselho:

"Enquanto o sr. for Secretário da Academia, não abandone a ideia de ver se um dia consegue do Governo a doação deste terreno". Com esse pedido reiterado despediu-se da vida Alcântara Machado, sem haver perdido a esperança de que o seu sonho chegasse um dia a concretizar-se.

E foi, realmente, o que aconteceu. A conjuntura política do começo da década de 40 — Alcântara Machado faleceu em abril de 1941 — era sobremodo favorável com Fernando Costa na interventoria do Estado e Altino Arantes na presidência da Academia, além de mais dois companheiros de Diretoria com trânsito livre nos círculos governamentais: René Thiollier e Gofredo T. da Silva Telles.

Antecipando de uma década os acontecimentos, cabe citar nesta altura o relatório de 1953 do Presidente Altino, sobre as atividades da Academia, referente ao papel de René Thiollier em toda a história da aquisição da sede própria, e da sua influência decisiva para alcançar aquele desiderato: "Manda a verdade e a justiça que eu assinale e ponha no devido relevo, pelo meu insuspeito e verídico testemunho pessoal, a circunstância de ter sido o Sr. René Thiollier quem primeiro se lembrou de pedir ao interventor Fernando Costa a doação do terreno do Largo do Arouche, no qual hoje pompeia o palácio acadêmico".

Esses conceitos do Presidente Altino, enunciados dez anos depois dos acontecimentos aqui narrados, visavam a prestigiar o acadêmico René Thiollier, cuja posição na Diretoria, naqueles idos, periclitava ante as investidas reiteradas do partido oposicionista, que aos poucos se formara no seio da própria Academia, e que não cessara de crescer com a renovação paulatina do seu quadro social. À maioria, nas associações democráticas em que tudo se decide pelo número de votos, era molesta a influência de um só homem à frente da instituição, quando as ideias-força do século já, de muito, haviam jogado para o índex das coisas imprestáveis aquela forma de governo. No ponto, quase, de nos despedirmos de René Thiollier será de elementar justiça insistir no seu grande merecimento, com respeito à consolidação do prestigio da Academia do Dr. J. J. de Carvalho, na delicada fase de sua formação.

Um belo dia, em julho de 1943, os astros indiferentes dispuseram-se na arrumação mais favorável para derramar eflúvios benéficos sobre o Largo do Arouche e, com maior incidência, no velho prédio meio esbarrondado de n° 242.

E foi assim que, na solenidade do Palácio dos Campos Elísios, programada para aquele dia, a Academia Paulista compareceu em peso. É que ia ser empossado um dos seus membros — Guilherme de Almeida — no cargo de Secretário do Conselho Estadual de Bibliotecas e Museus. Importava, por conseguinte, fazer sentir às pessoas ali presentes que não fora escolhido para aquela investidura apenas um cidadão de reconhecida competência e, por todos os títulos, notável, mas, e principalmente, por ser membro da Academia Paulista de Letras, entidade invisível para os olhos do corpo, mas de influência inequívoca no nosso meio, no âmbito das atividades superiores do espírito. Qualquer iniciativa desse gênero interessava mui de perto à Academia.
Como porta-voz dos seus confrades, Monsenhor Castro Nery saudou o homenageado. Com o simples enunciado do nome do orador, está dito o principal, nada mais sendo preciso acrescentar para nos convencermos de que, depois daquela peça de eloqüência o auditório se afinara com a Academia, em consonância com suas aspirações. Em tais circunstâncias, qualquer pedido oficialmente formulado por quem de direito contaria de antemão com a boa acolhida por parte dos homens do Poder.
Além do mais, René Thiollier já havia comunicado suas intenções ao Dr. Abelardo Vergueiro César, — "que fora amicíssimo de Alcântara Machado" — um dos Secretários do Governo, o qual lhe respondeu: "Perfeitamente. Peça, também ao Teotônio Monteiro de Barros, que isso está mais afeto à Secretaria dele".
A cena foi emocionante. Melhor do que tudo, será reproduzir o diálogo a meia-voz travado entre os dois próceres da Academia e relembrar as tretas de René Thiollier para levar Altino Arantes a formular o seu pedido. Monsenhor Castro Nery acabara de falar.
"O Interventor Fernando Costa emocionou-se. Enquanto ele se pôs a responder, eu, voltando-me para o Dr. Altino Arantes, travei-lhe do braço e disse-lhe:
— Chegou a hora, Dr. Altino. Vamos fazer o pedido.
— Que pedido?
— O pedido do terreno de que eu lhe falei, há tempos, do Largo do Arouche, que o Dr. Alcântara Machado tanto desejava para a Academia.
— Você vai fazer isso?
— Eu, não; o Sr. é quem vai fazer.

E sem outra explicação, dirigi-me ao Interventor Fernando Costa:
— Senhor Interventor! O Sr. Presidente da Academia deseja fazer a V. Exª um pedido. Queria que V. Exª desse à Academia o terreno do Largo do Arouche, n°
242, onde funciona o dispensário "Alvaro Guião".
O Dr. Altino Arantes, aproveitando-se da minha deixa, fez, então, o pedido numa forma elevada, elegante. Gabou o governo que S. Exª estava realizando em São Paulo e fez-lhe sentir o alcance que teria o seu gesto, caso levasse a efeito o sonho que, de longa data, alimentava a Academia."
Foi isso apenas o que se passou na tarde da posse de Guilherme de Almeida, no cargo de Secretário do Conselho Estadual de Bibliotecas e Museus. Com aquele pequeno donativo, caído da cornucópia do Interventor Fernando Costa — o homem da terra — de valor incalculável, estava asselado o futuro da Academia. Mas, a Academia, digamos, este prédio de cimento armado, de linhas austeras, levantado no terreno em que se desfazia o casarão de n° 242, não soube agradecer como devia aquela dádiva.
Não! Dois membros da nossa Academia, porém, — e, por curiosa coincidência, também da Brasileira — restabeleceram o crédito da Academia Paulista, corrigindo, na medida do possível, a falta involuntária do imponente edifício. O primeiro, Menotti Del Picchia, num artigo de jornal, logo transcrito na nossa Revista (n° 27, de 12 de setembro de 1944), em que sugere a ereção de um busto de Fernando Costa no "hall" do futuro prédio da Academia, o que jamais foi feito nem proposto oficialmente; e o segundo, o poeta-acadêmico Guilherme de Almeida, com uma crônica no "Diário de São Paulo", por ocasião da inauguração do busto de Fernando Costa em frente à Escola Nacional de Agronomia, no km 47 entre o Rio e São Paulo, e muito provavelmente sem a presença de nenhum acadêmico da Paulista, para associar-se à homenagem.
São duas peças monumentais, porque exprimem de primeira mão os sentimentos elevados dos respectivos acadêmicos. O artigo de Menotti precisa ser conhecido, para edificação das novas gerações de acadêmicos que desconhecem a sua Revista. Apesar de haver sido lançado no papel ao correr da pena, logo após ao falecimento do grande brasileiro, traduz o confrangimento de quem sentiu deveras a morte do benfeitor da Academia.
Fernando Costa, benemérito das letras
"O ilustre Interventor Fernando Costa sempre foi um homem bom. Especializado no setor agrícola, prático, direto, prestou serviços reais na Secretaria da Agricultura e, depois, no Ministério da Agricultura. Com tal especialização, não era de esperar que, num setor tão diverso do agrícola e rural — o campo florido das letras — fosse Fernando Costa o administrador que mais viria a fazer por elas. E fez.
A Academia Paulista de Letras era uma deserdada da fortuna. Possuía no seu seio valores dos mais altos do Brasil, e fora a casa de Vicente de Carvalho, Amadeu Amaral, Brasílio Machado, Paulo Setúbal, Alcântara Machado etc.

É ainda a casa de quarenta nomes estelares.
A Academia Paulista não tinha pouso. Vivia daqui para ali, ora reunindo-se em casa de Alcântara Machado, quando o grande paulista, vivo, presidia esse cenáculo, ora na casa do seu atual Presidente Altino Arantes, ora numa salinha do DEIP. Quando não era em locais tão austeros, era na ruidosa boêmia dos restaurantes.
A custo a indigente Academia publicava talvez a melhor Revista literária do Brasil. René Thiollier, seu secretário, fazia milagres financeiros para ter em dia as contas dessa publicação: papel caro, impressão cara, distribuição difícil ...
Fernando Costa começou a salvar a situação: em primeiro lugar, garantiu uma subvenção a esse instituto, que, por lei, já fora considerado de utilidade pública. Garantiu a vida da Revista da Academia Paulista de Letras. Havia, porém, outro problema a resolver. O Sr. Armando Sales, por lei, ordenara ao Prefeito Prestes Maia que desse uma sede, no prédio da Biblioteca Municipal, que o Prefeito Fábio Prado organizara, ao cenáculo bandeirante. A sede não apareceu.
Condoído com tanto infortúnio, Fernando Costa tomou sob seu apoio a sorte da Academia. Deu-lhe um prédio. Vai transformar esse prédio num palácio digno da cultura de São Paulo.
Os intelectuais planaltinos agradecem a consideração que o interventor de São Paulo tem pela sua inteligência. Não é favor nenhum, como se vê, considerar o Sr. Fernando Costa um benemérito da nossa cultura. Assim como o Sr. Getúlio Vargas deu à Academia Brasileira o terreno e o prédio que ela possui num dos pontos mais importantes da Capital da República, na Avenida Presidente Wilson, assim o Sr. Fernando Costa beneficiou a casa de Alcântara Machado. No "hall" da Academia Brasileira há, em bronze, o busto de Getúlio Vargas. O do Sr. Fernando Costa deverá ornar a entrada do futuro prédio da Academia Paulista de Letras, porque, como se vê, é ele, desse alto cenáculo bandeirante, o seu grande benfeitor.
Menotti Del Picchia."
E, por que não transcrever, também, a crônica de Guilherme de Almeida? Com as mesmas características do artigo de Menotti, completa a sua sugestão e, de algum modo, repara a falta da Academia. Ei-la, na íntegra, tal como foi reproduzida no IV 44, página 168 da nossa Revista de 12 de dezembro de 1948.
"FERNANDO COSTA — No dia 22 de setembro o acadêmico Sr. Guilherme de Almeida homenageou a memória do grande paulista — o saudoso Interventor Fernando Casta, que tanto beneficiou a nossa Academia, publicando a seguinte crônica no "Diário de São Paulo":
A Resposta da Terra — setembro 22.

Ontem — precisamente o dia em que chegou a Primavera — em frente à Escola Nacional de Agronomia, no quilômetro 47 entre o Rio e São Paulo, da terra brotou urna planta eterna de granito e bronze: o monumento a Fernando Costa.
Unia resposta da terra ao "homem da terra".
Só a terra sabe dar a quem lhe dá. Uns, os simples utilitaristas do "do ut des" — dão-lhe o amanho e a semente para dela receber a compensação da colheita generosa. Aquele, o verdadeiro "homem da terra", não deu para ter; deu por dar. E não foi o grão promissor de farturas o que semeou; foi sua fé, foi seu ideal, foi sua ação, foi sua inteligência, foi sua bondade; e foi, afinal, seu próprio sangue vertido no martírio brutal de uma fatalidade cega.
Mas dessas supremas oferendas eis que miraculosamente um arbusto agora se ergue como um fruto que o semeador não colherá, porque não deu para ter; deu por dar. Arbusto de pedra, fruto de metal; perenes, ambos, na volúvel superfície da terra, sob o vôo efêmero das estações, ante a gula passageira dos homens. Arbusto que é ele mesmo — "o homem da terra" — que é a sua própria imagem fundida no bronze imarcescível sobre o granito estável. O Tempo passará por ele, impotente; ante ele desfilarão, respeitosas, as gerações. Nem aquele precisará amadurecê-lo; nem estas poderão colhê-lo. O mais que hão de fazer será parar, um instante, à sua sombra — e passar. Passar, enquanto ele fica.

Ele fica.

Ao que semeou sua fé, seu ideal, sua ação, sua inteligência, sua bondade, a terra respondeu com as únicas coisas duráveis que há no seu ventre dadivoso: a pedra e o metal."

Não partiu da Academia ideia de tão grata iniciativa; mas, afinal, são vozes da Academia, que bem traduzem, à distância, a nossa dor e atenuam a falta irreparável do nosso esquecimento.





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