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DISCURSO DE POSSE
Acadêmico: Erwin Theodor Rosenthal
"Sinto-me compelido a vos expressar, juntamente com estes agradecimentos, minha inabalável decisão de empenhar-me, com todas as forças, para colaborar convosco no engrandecimento contínuo desta Academia"


Transpondo neste momento o limiar deste ilustre cenáculo das letras paulistas, quero apresentar o meu mais profundo agradecimento a quantos me sufragaram o nome, tornando-me partícipe desta corporação de escól. Sei que a honrosa chamada para unir-me a vossas nobres tarefas é fruto exclusivamente de vossa benevolência, já que os meus reduzidos méritos em nada a justificam. Por isso mesmo sinto-me compelido a vos expressar, juntamente com estes agradecimentos, minha inabalável decisão de empenhar-me, com todas as forças, para colaborar convosco no engrandecimento contínuo desta Academia, a fim de que não tenhais de arrepender-vos da escolha realizada.

Se a ambição de pertencer ao ilustre convívio desta Casa é justificada para quantos se dedicam às letras e ciências humanas nesta Cidade e neste Estado, julgava tratar-se, entretanto, de meta absolutamente utópica no meu caso, e por motivos relevantes. Embora sexagenário, sou paulista qüinquagenário, pertencendo à Paulicéia, que tenho por verdadeira pátria, em verdade há mais tempo do que 85% de toda a população, mas com as minhas raízes em terras européias. Desde cedo dediquei-me, como jornalista, professor e autor, ao intercâmbio entre as origens na velha Alemanha e a generosidade natural da nova pátria brasileira.

Busquei, desde menino, o congraçamento com os meus concidadãos paulistanos, casei com paulista e tenho uma filha nascida em São Paulo. Sinto-me, como já disse, paulista, sem abdicar porém do amor e da dedicação à terra e à cultura de origem, e consegui manter esses sentimentos no mais harmonioso convívio, sem que - mesmo nos difíceis anos da guerra - a dicotomia íntima me tivesse afligido. Sempre fui grato ao muito que recebi de São Paulo, mas neste momento, e relembrando as palavras do inesquecível acadêmico José Pedro Leite Cordeiro no ato solene de sua posse, "encontrando-me não só diante de vós, mas também entre vós", vejo-me constrangido a vos confessar que recebo este alto galardão com profunda humildade e uma pitada de incrédula surpresa.

Por que terá a escolha recaído em que vos fala, por que terei sido animado a candidatar-me a uma vaga neste sodalício? Credito esta extrema generosidade antes de mais nada à amizade sincera que me une há tantos anos a muitos vós. Ainda colegial, travei amizade fraterna com Paulo Bomfim, cujo Antonio Triste, prova primeira e indiscutível da genialidade poética do Autor de Transfiguração, Relógio de Sol, Cantiga do Desencontro, Poema do Silêncio, Armorial, Colecionador de Minutos e de tantos outros soberbos volumes, ainda não havia sido publicado. Esta amizade provou ser inabalável ao longo dos decênios e nada poderia alegrar-me mais nesta data do que saber que o acadêmico Paulo Bornfim acedeu à indicação presidencial para receber-me. Foi ele, aliás, o primeiro a animar-me ao acalento desse sonho que se afigurava impossível: a convivência convosco, Senhores Acadêmicos. Nos mesmos e distantes anos em que nos conhecemos, era colega, no tradicional Colégio Paulistano, de saudosa memória, de Geraldo Pinto Rodrigues, amigo que reencontraria anos mais tarde na Universidade de São Paulo, onde acabaríamos por trabalhar lado a lado até a nossa aposentadoria. Estudante ainda, iniciei-me na carreira jornalística, e se nas Folhas o insuperável Mário Donato, e poucos anos mais tarde, a cultíssima e dedicada Dª. Maria de Lourdes Teixeira vieram a ser queridos superiores, desenvolvi contudo o meu trabalho mais intenso em A Gazeta , dirigida por Arco e Flexa e Pedro Monteleone, e ali conheci - entre muitos soberbos intelectuais paulistas - os acadêmicos Menotti del Picchia, Honório de Sylos e Tito Lívio Ferreira, ligando-me a este último desde então laços de especial afeto. No desempenho do trabalho jornalístico privei ainda com José Tavares de Miranda, Israel Dias Novais e com o bem mais jovem e brilhante José Geraldo Moutinho Nogueira. João de Scantimburgo foi companheiro de inesquecível primeira viagem à Europa, em seguida à qual passamos a encontrar-nos com freqüência. O contacto com todos esses queridos colegas transformou-se numa invejável ‘escola da vida’, que instilava seus ensinamentos no jornalista principiante de forma sábia, amena e bastante risonha. Hernani Donato, o jovem escritor, já célebre como autor de livros infantis e juvenis e de traduções de fama, vim a conhecê-lo por volta de 1950, quando publicou os Filhos do Destino, e eu o primeiro trabalho literário em forma de livro. Recomendou-me na ocasião ao seu bom amigo e colega Francisco Martins, com quem viria a colaborar em várias ocasiões, para a alegria minha, na excelente Melhoramentos. Por essa época, concluídos os estudos, e trabalhando como assistente na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, vim a conhecer a nossa formosa e já famosa ficcionista Lygia Fagundes Telles, e pouco depois o querido professor Antônio A. Soares Amora desviou-me das lides do jornalismo diário com irrecusável convite para exercer o magistério na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis, da qual era diretor-fundador. A alegria de trabalhar ao seu lado foi coroada com a eleição para ser seu vice-diretor e, mais tarde, retornando a São Paulo e à alma mater, tornei a conviver com esse extraordinário amigo e conselheiro. Conheci Odilon Nogueira de Matos, após ocasionais encontros no terceiro andar do edifício da Escola Caetano de Campos, instalações da então Faculdade, como colega querido em estabelecimento secundário, onde dávamos aula e partilhávamos dos mesmos problemas. Já então eram famosos os seus saraus musicais, e na Faculdade de Filosofia, quando para lá retornei, pude sempre valer-me de sua sabedoria e seus conselhos, agora aqui renovados, pois proporcionou-me preciosos subsídios a respeito do Patrono da Cadeira nº 19. Dedicando-me também à editoria ou co-editoria de revistas e de suplementos literários (em A GAZETA, VISÃO e, mais tarde, no SUPLEMENTO CULTURAL de O ESTADO DE SÃO PAULO) conheci mestres extraordinários, cuja obra muito admiro e entre os quais não posso deixar de mencionar os acadêmicos Mário Graciotti, Alcântara Silveira e Péricles Eugênio da Silva Ramos, e ouso considerar este último meu protetor nesta Academia. Na própria Faculdade convivi com vários excelentes colegas e amigos, desfrutando do seu sábio contacto, apreendendo e beneficiando-me, e nesse contexto cumpre ressaltar o Acadêmico Raul de Andrada e Silva, igualmente estimado por colegas e alunos.

Tive a ventura de privar, no âmbito do Conselho Universitário inicialmente, e depois em particular, com dois Reitores Acadêmicos de cuja amizade me orgulho e que muito admiro pelo saber e o extraordinário poder de transmissão de conhecimentos, Miguel Reale e Alfredo Buzaid. Seja-me permitido evocar outro eminente Reitor da Universidade de São Paulo que, acadêmico, partiu do nosso convívio há poucos meses, e a quem devo este preito de saudade: Ernesto Leme! Todos os referidos, conheci-os há bem mais de um quarto de século, e se é mais recente o meu convívio com as demais e tão estimuladas figuras que compõem, sob a sábia presidência do eminente acadêmico Lycurgo de Castro Santos Filho este sodalício, o prejuízo é apenas meu, que de há algum tempo a esta data venho tentando reparar.

Seja por este, seja por outro motivo mais que tenha sido eleito, fato é que me encontro entre vós, a cumprir as regras do jogo acadêmico, que desde logo impõem tarefa sumamente delicada: evocar as figuras marcantes que iluminaram a Cadeira 19. Antonio Joaquim da Rosa, Barão de Piratininga, é seu patrono; Cláudio (Justiniano) de Souza (Júnior) é o fundador, e seu último ocupante foi o saudoso acadêmico José Pedro Leite Cordeiro, médico afamado e historiador brilhante, autor de quase oito dezenas de obras publicadas, entre as quais várias consagradas ao Patrono e ao Fundador, de raro brilho, cuja leitura aqui iluminaria melhor do que quaisquer outras considerações a vida e obra desses ilustres Paulistas. A praxe, contudo, obriga-me a proporcionar-vos o meu enfoque, o que tentarei fazer, iniciando com breve retrospecto do que representaram para as letras e a cultura do Brasil patrono e fundador.

São Roque foi berço de ambos, e Antonio Joaquim da Rosa, Barão de Piratininga - cuja obra em prosa e poesia vem de ser publicada por esta Academia, como 14° volume da série que resultou de uma das felizes iniciativas de José Pedro Leite Cordeiro - passou quase a existência toda (1821-1886) na cidade fundada pelo bandeirante Pero Vaz de Barros. O mencionado volume, reunindo pela primeira vez toda a produção literária conhecida do Barão de Piratininga, é introduzido pelo luminoso e revelador estudo do saudoso Ernani Silva Bruno: Um pioneiro da literatura de ficção em São Paulo, ao qual devo - juntamente com os trabalhos de José Pedro Leite Cordeiro, Joaquim Silveira Santos e Enzo Silveira, bem como do inesquecível professor Astrogildo Rodrigues de Mello - as informações de que me vali para falar do autor de A Cruz de Cedro.

De sua infância e estudos dispomos de parcas informações, apenas. É provável que nunca se tenha dedicado a estudos superiores formais, mas sem dúvida foi homem de avultadas leituras e, para a época, possuía cabedal de multifacetadas informações. Aos vinte e quatro anos já era vereador, dedicando-se a partir da metade do século passado de corpo e alma à política, estendendo seus interesses, inicialmente restritos à cidade natal, em breve a toda a Província de São Paulo. Hospedou na sua casa o jovem D. Pedro II, que estava de passagem por São Roque, o que indica não apenas o nível de vida de Antonio Joaquim da Rosa, mas revela a sua influência local. Membro do Partido Conservador, foi eleito em 1850 deputado à Assembléia Legislativa Provincial e várias vezes reeleito, tendo chegado em 1869, embora por poucos dias, à Presidência da Província. A respeito dessa breve passagem pelo mais elevado cargo político e administrativo de São Paulo apresentou Relatório sucinto, do qual me permito extrair trecho saborosamente atual, pois apela para a fiscalização popular da eficiência dos gastos públicos: “... sendo as obras públicas feitas e expensas do povo, que as sustenta por meio de impostos, entendi que o principal fiscalizador delas devia ser o mesmo povo, interessado para que os seus sacrifícios sejam aplicados em seu benefício. Neste intuito, determinei ao tesouro provincial que mandasse publicar na folha oficial todas as férias de despesas feitas com estradas e outras obras públicas, que fossem apresentadas para pagamento ao mesmo tesouro ou às estações fiscais das diferentes localidades". Antonio Joaquim da Rosa foi agraciado em 1872 com o título de Barão de Piratininga, principalmente pelo apoio dado à elaboração da Lei do Ventre Livre. Entre seus inúmeros pronunciamentos políticos, de grande impacto, pois era orador fluente e habilidoso, é de destacar aquele em que pretende ver "afrouxados os laços de excessiva centralização", a qual, a seu ver, prejudicava os interesses da Província. Significativo e comprobatório de sua larga visão político-econômica é também o apoio irrestrito que deu à inclusão de São Roque no traçado da Estrada de Ferro Sorocabana, "o que muito concorreu em prol desenvolvimento ou progresso da cidade de São Roque", como afirma Enzo Silveira. Aliás, o Barão viria a ser mais tarde um dos mais importantes administradores da mencionada Companhia.

Pouco se sabe de sua aparência, mas melancolia e pessimismo transparecem na única palavra que mandou inscrever na sua lápide: NINGUÉM. Seu amigo, o romancista Júlio Ribeiro, descreveu-o como velho fidalgo, organização de aço sob aparência doentia e franzina e Joaquim Silveira Santos, no volume São Roque de Outrora, assim o retrata: "Era franzino de corpo, o dorso acurvado, o aspecto enfermiço denunciando a moléstia cruel, a asma, que o afligia desde moço. Através das sobrancelhas cerradas e longas, coava-se o seu olhar agudo e frio, que parecia penetrar no íntimo de seu interlocutor".

Toda a sua obra literária, abrangendo os gêneros lírico e épico, foi escrita entre os 27 e 30 anos de idade. No campo do conto, da novela e do romance pode ser considerado pioneiro nas letras nacionais; como ficcionista é o primeiro paulista de quem se tem notícia, mas conforme dizia (e a informação é de Ernani Silva Bruno) "escrevia para distrair -se da vida comercial, tão árida e tão prosaica". Herdara um próspero negócio, a Loja Grande do pai, prematuramente falecido, e administrava-o juntamente com o seu irmão, Manuel Inocêncio. Poucos anos mais tarde, porém, devido ao chamamento cada vez mais intenso da vida política, não só de São Roque, mas de toda a Província, é provável que se tivesse distanciado da criação literária em prol de uma absorção intensificada de textos, que lhe pudessem ser de valia no desenvolvimento das novas atividades. Adquiriu um sítio, com casa e capela seiscentista (de Santo Antônio), erigindo ao lado nova e confortável residência, supõe-se que antes para servir de ponto de reunião de políticos do que para o usufruto familiar, pois jamais se casou. É improvável que tivesse voltado de vez as costas para as musas, e que nenhuma vez antes do falecimento (ocorrido em 26 de dezembro de 1886) voltasse a produzir literariamente. Cioso de sua reputação de administrador e político austero, talvez considerasse a feitura de poemas ou contos prejudicial ao bom nome de homem público, não deixando por isso legado mais elaborado de sua produção. Seja como for, porém, o que dele conhecemos são duas novelas (A Feiticeira, 1848, e A Assassina, 1849) e um romance (A Cruz de Cedro, 1851), além de doze poemas. Existem, em verdade, ainda quatro textos de época posterior: Um poeta desconhecido; Jaime Silva Telles; Ermida de Santo Antonio; e Salto de Guainumbi, neles se manifestando antes o historiador e o arguto observador do que o poeta ou o ficcionista. Como tal, e principalmente se tivermos em termo de conta o fato de ter escrito essa obra na juventude, revela muita leitura e bastante erudição. Em 1848, o primeiro dos três ou quatro anos de sua produção literária conhecida, "o que poderia ter lido na ficção brasileira, que lhe servisse de inspiração ou modelo?" pergunta Ernani Silva Bruno, pois "reduzia-se até então a ficção nacional e meia dúzia de romances ou novelas de Justiniano José da Rocha (...), de Pereira da Silva, de Joaquim Norberto, de Teixeira e Sousa, de Azambuja Suzano- além de A Moreninha e o Moço Loiro de Macedo".

Da leitura de Antonio Joaquim da Rosa inferimos, entretanto, que conhecia muitos entre os grandes autores universais, e não apenas de referência, conforme provam as suas citações clássicas, as menções das teorias de Fournier e Proudhon, as passagens mitológicas, as indicações a levarem ao teatro de Racine e às Reflexões e Máximas Morais, de La Rochefoucauld. Na Cruz de Cedro envereda até mesmo pelo campo da especialidade de quem vos fala, não apenas se referindo aos Sofrimentos do Jovem Werther de Goethe, mas remetendo o leitor atento a passagens não explicitadas, mas certamente provenientes do lendário poeta Ossian, criação de James Macpherson (1736-1796), na interpretação que lhe dá o Werther (em 1821 pela primeira vez traduzido para o português), pois em Antonio Joaquim da Rosa surge, tal como em Goethe, o "melancólico bardo de Selma, vacilando entre as ruínas do passado" (pg. 76). Deste conhecimento de Goethe deve-lhe ter vindo também a idéia de informar-se sobre Johann Kaspar Lavater, o escritor suíço (1741 - 1801) amigo de Goethe, que o ajudou na feitura de sua obra principal, Os fragmentos fisionômicos. Lavater, diácono e pastor, era possuído de imensa curiosidade pelas sugestões magnéticas, como chamava aos transes hipnóticos, de origem então desconhecida, os quais suscitavam também o interesse de Antonio Joaquim da Rosa, conforme demonstra a sua prosa de ficção.

Sua linguagem literária, embora geralmente presa ao estilo próprio da primeira fase romântica, procura cá e lá libertar-se da grandiloqüência dos epitheta ornantes e de outros rebuscamentos, embora não mantenha por muito tempo o despojamento pretendido: "Traçamos (esta história verdadeira) sem nos socorrer de imagens e flores românticas, para não desnaturá-la, porque a verdade não necessita de atavios e pompas emprestadas. Tanto maior é o seu brilho quanto mais é descrita com singeleza". (A Assassina, pg. 35) Outras vezes surpreende o futuro Barão não apenas pela introdução de expressões popularescas, emprestando sabor de autenticidade ao discurso geralmente empolado, mas ainda por recorrer, no intuito de provocar a comicidade, a estrangeirismos da moda, assim quando diz: "ele capiscava seu pouco de espanhol" (pg. 38), italianismo que engenhosamente precede aos versos seguintes, toscamente espanholados, e isto em 1849, época anterior à imigração italiana em São Paulo.

Por tudo o que aqui se referiu, patenteia-se a justiça de homenagear esse ilustre São-Roquense como autêntico precursor de nossas letras, como político austero e administrador perspicaz e, sobretudo, como patrono de escól a dignificar a Cadeira nº 19.

"Em 1500, Pedro Álvares Cabral lançava âncora em Porto Seguro, descobrindo o Brasil. Na noite de 7 de julho de 1502, no Paço de Alcáçova, de Lisboa, Gil Vicente lançava o teatro português nos aposentos da Rainha D. Maria com o monólogo A Visitação, para festejar o nascimento, dois dias antes, do filho daquela rainha, D. João IV Nascia um século: o século de Portugal, na expressão de Lopes de Mendonça. Nascia um país imenso. Nascia um rei. Nascia um teatro".

Estas primeiras linhas do ensaio de Cláudio de Souza, O teatro luso-brasileiro do século XVI ao século XIX constituem, a nosso ver, exemplo feliz para a avaliação de sua força expressiva, sobretudo nos estudos históricos. De acordo com Cesare Pavese (in: Mestiere di vivere) "uma vez redigida a primeira linha do trabalho literário tudo se definiu: o estilo, a tonalidade, bem como o decurso dos acontecimentos; todas as outras partes podem e devem resultar dessa linha inicial".

E se Coelho Neto elogiou Cláudio de Souza, autor de mais de oitenta títulos, não apenas pela "observação aguda", mas também pela "linguagem sempre natural e escorreita sem preciosismos" é porque se lembrava desse lado de sua produção, a que mais tarde se juntariam também os seus bem urdidos livros de viagem, pois os trabalhos de ficção em prosa e drama, assim como as conferências dos últimos anos incidiam freqüentemente em exuberâncias vocabulares que surpreendiam pelo fausto da sinonímica e a riqueza gongórica da adjetivação, o que explica a exclamação de Aristêo Seixas: "Que abundância de vocábulos e que riqueza de expressão!", assim como o estudo de A. Tenório d Albuquerque, A opulência vocabular de Cláudio de Souza. Não há dúvida de que na comunicação lingüística existe escolha mais ou menos consciente dos meios de expressão, e tanto mais consciente quanto mais culta e intencionalmente literária for a linguagem. Já deste ponto de vista sobressaem as qualidades de escritor do clínico e psicólogo que, de corpo e alma, se devotava à literatura, muito embora optando por recursos estilísticos que hoje não aceitamos e que, por isso mesmo, podem ser o motivo primeiro para o desconhecimento atual da obra de Cláudio de Souza, a qual pelo menos em partes consideráveis - merecia ser reestudada e reimpressa.

O fundador desta Cadeira, e um dos principais animadores da própria fundação desta Academia, nasceu aos 20 de outubro de 1876 em São Roque, matriculando-se, após conclusão dos estudos iniciais, já aos catorze anos, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Durante as férias, passadas em São Paulo, publicou a sua primeira contribuição literária, uma Fantasia, conforme a designou, no Diário Popular. Na Faculdade de Medicina foi co-fundador da Revista Acadêmica e de outra publicação de efêmera existência, A Atualidade. Assim sendo, dividiu desde os primórdios de sua carreira a atenção entre literatura e medicina, bem como a sua permanência entre São Paulo - tinha entranhado orgulho de ser paulista - e o Rio de Janeiro, onde iria passar a maior parte de sua vida. Ainda estudante, trabalhou com Olavo Bilac e Júlio Machado na revista A Bruxa, tornando-se depois colaborador assíduo de A Gazeta da Tarde, A Notícia e A Cidade do Rio, esta última dirigida por José do Patrocínio. Seu doutoramento, versando sobre Os nevropatas e os degenerados, destaca um capítulo sobre a arte, enfocando - entre outros aspectos - o artista como um desviado da normalidade, reflexão com que se integrou em corrente então absolutamente moderna, da qual, por exemplo, participava Thomas Mann, apenas um ano mais velho. Cláudio de Souza viajou para o velho Continente à busca de especialização na sua ciência, não descurando porém de literatura, e aos 22 anos escreveu o romance Pater, inédito até 1913, quando foi editado em Paris. Seu romance de maior sucesso viria a ser As mulheres fatais (1930), publicado em mais de quinze edições e traduzido para o espanhol, Las mujeres fatales, o francês, Chair de péché e o italiano, Carne di peccato, tornando patente a simbiose de médico e escritor, ao pôr em relevo casos clínicos, exames de psicopatas e comportamentos anormais, analisados com penetrante olhar. Seu sucessor na Academia Brasileira de Letras, Josué Montello, diria mais tarde: "Se As mulheres fatais não é romance superior a O Homem, de Aluísio Azevedo, a verdade é que não é inferior a A Carne de Júlio Ribeiro. Mas enquanto este livro continua o seu caminho, em edições que se repetem, o livro de Cláudio de Souza vai acumulando essa densa poeira do tempo, que se chama esquecimento". Muitos foram os seus livros de ficção, e poderíamos citá-los aqui, ressaltando quiçá a Luta das Gerações (1951), em torno do difícil relacionamento de pai e filho, os contos de Sol e Sombra ou a biografia romanceada As Conquistas Amorosas de Casanova. Mas estaríamos abusando de vossa atenção, por ser imensa a lista e por repisarmos assunto excelentemente bem tratado por Leite Cordeiro. Só cumpre destacar a devoção do fundador desta Cadeira ao teatro e foi nesse gênero que colheu os seus mais expressivos triunfos. Tinha dezenove anos em 1895, ao iniciar sua produção dramática com Mata-a ou ela te matará. Vinte anos mais tarde, em 1915 e 1916, apresentando Eu arranjo tudo e Flores de Sombra, é festejado como glória nacional. Esta é uma comédia de costumes herdada da França, porém fortemente aclimatada, pois enfoca a vida na fazenda paulista, que contrasta positivamente com a civilização artificial e mentirosa da Capital da República, refletida no confronto do amor puro de uma menina de roça com o namoro de conveniências de uma semi-mundana do Rio de Janeiro. A peça, apresentada nos principais palcos do País, fez com que Cláudio de Souza viesse a ser comparado pela crítica entusiasmada a Martins Pena, a Joaquim Manuel de Macedo e a José de Alencar. Outras obras dramáticas de sua pena, "A Renúncia", "As Sensitivas", "Os Bonecos Articulados", "O Turbilhão", "La Petite et Le Grand", "Le Sieur de Beaumarchais", "O grande cirurgião" e muitas mais, levaram o nome de seu autor não apenas através do Brasil, mas a outras nações latino-americanas e mesmo a Além-Mar, já que foram apresentadas também em Portugal, Espanha, França e Itália. Realmente obteve Cláudio de Souza espantosa ressonância: seu Sieur de Beaumarchais foi representado pelo insigne ator Louis Jouvet, que a respeito disse tratar-se de verdadeiro "regal de l espirit". A "fulguração verbal" chamou a atenção de Joaquim Leitão, da Academia de Ciências de Lisboa; Ferreira de Castro elogiou-o como "grande escritor e grande psicólogo", Mario Puccini, romancista italiano seu contemporâneo, chama a arte de Cláudio de Souza "brilhante, pestiva, arguta. Ho letteralmente devorato i suoi libbri", concluiu.

Nos últimos anos dedicou-se ainda ao cinema, consagrando a esse novo e difícil gênero a sua produção Pátria e Bandeira. Entre seus trabalhos históricos é de ressaltar Os Paulistas - seu passado, seu presente (1936), que passa em revista toda a história bandeirante, desde Martim Afonso até os seus dias. Os livros de viagem, escreve-os a partir de 1928, quando publica De Paris ao Oriente, um relato bem humorado de observador arguto do gênero humano, focalizando encontros e desencontros numa viagem de Paris a Marselha, Nápoles, Atenas, Smirna, Rhodes, Chipre, Beirute, Haifa, Nazaré e Jerusalém. Seguem outros, assim a Viagem à região do Pólo Norte e a Viagem à Terra do Fogo, e nota-se neles o prazer que derivava dessas jornadas. Citava a propósito Francis Bacon (1561-1626): "Travel, in the younger sort, is a part of education; in the elder, a part of experience" (viajar, para os jovens, faz parte da educação; para os mais velhos, da experiência"). Cláudio de Souza realiza, em vésperas do ataque a Pearl Harbour, minuciosa conferência, relatando as suas Impressões do Japão, muito encomiásticas, mas, ainda assim, tão bem urdidas, que Stefan Zweig (a quem viria dedicar a tocante homenagem "Os últimos dias de Stefan Zweig") lhe escreveu: "Combien vous avez su saisir et condenser toute l âme dun peuple en quelques pages! Cela pourrait rendre un écrivain jaloux, sil nétait en même temps fier d être votre ami!".

Cláudio de Souza, eleito em 1924 membro da Academia Brasileira de Letras, onde sucedeu a Vicente de Carvalho na cadeira n° 29, foi duas vezes seu presidente e veio a falecer no Rio de Janeiro aos 28 de junho de 1954. Foi no seu tempo autêntico renovador do teatro nacional, notabilizou-se como conferencista, tratando de temas que se estendiam desde a evocação de figuras literárias, tais como Machado de Assis, John Milton, Luigi Pirandello e Stefan Zweig, até a discussão de problemas sociais, políticos e históricos. Durante vinte anos dirigiu o PEN-Clube do Brasil, que fundara no Rio de Janeiro, e manteve correspondência vasta com figuras exponenciais do seu tempo, entre as quais Ortega y Gasset, Maurios, Duhamel, R.Rolland, Ludwig, Maritain e H. G. Wells. Aureliano Leite afirmou com muita propriedade (in Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, 25/2/67) que "o tempo está sendo muito ingrato para com aquele que trouxe no bolso da velha Albion o P.E.N. Clube do Brasil, de que saiu o PEN -Clube de São Paulo" e ressaltou no mesmo artigo a estatura de Cláudio de Souza como benemérito das letras brasileiras até mesmo depois da morte, pois "destinou sua fortuna a obras de cultura, a entidades literárias, como o seu P.E.N. Clube, à Academia Brasileira de Letras e à Academia Paulista de Letras. Deixou a esta, além do mais, os tapetes, o mobiliário clássico, as telas, a livraria, os bronzes, os mármores e, para coroar, um espetacular oratório de origem baiana, que preside a seu famoso Salão Nobre". E concluiu: “Tornou-se autêntico Mecenas”. Homenagem, reconhecimento e gratidão pois neste dia, a Cláudio de Souza.

É grato dever passar a considerações não apenas em torno da obra, mas também da figura humana ímpar do meu insuperável antecessor nesta Academia, seu insigne ex-presidente, José Pedro Leite Cordeiro. Nenhuma caracterização encontrei mais adequada para chegar à súmula da existência dessa cativante figura humana do que a apreciação que ele projetou do alto desta tribuna de Cláudio de Souza:

"Tanto na medicina como na literatura, através dos largos horizontes de suas concepções, dos mitos que desfez, dos padrões que criou, da observação e da experiência da vida que soube captar, aplicar e transmitir, da verdade que cultivou e, sobretudo, das forças emanadas de sua inteligência, concorreu deliberada e acentuadamente para o maior conhecimento da criatura humana".

Que belas palavras para descrever, mediante a simples substituição de literatura por história’, o padrão de vida por que optou José Pedro Leite Cordeiro! E, no entanto, foi mais do que isso, e vós, Senhores Acadêmicos, bem o sabeis, pois com ele convivestes diuturnamente, apreciando o brilho de sua inteligência, a fluência das suas palavras, o seu espírito de liderança inconteste e a sua cordialidade inata. Não tive a felicidade de conhecê-lo de perto, de privar de sua intimidade; foram apenas poucos encontros fortuitos, que entretanto muito me impressionaram. Do primeiro recordo-me perfeitamente. Foi nos inícios dos anos cinqüenta, num programa da Rádio Gazeta, a Hora do Livro, a qual José Pedro Leite Cordeiro fora convidado para falar sobre Um Livro na minha vida. Depois da feliz alocução, conversou com membros da redação da saudosa Gazeta, entre os quais me incluía, e os breves minutos que nos dedicou foram suficientes para deixar impressão duradoura, pela demonstração de amplo saber e excelente memória, permitindo-lhe não apenas enfocar aspectos de campos os mais diversos, mas ainda relembrar estórias d antanho, entremeadas de episódios engraçados, com os quais vivificava o relato. Mais tarde, encontrei José Pedro Leite Cordeiro nesta Academia, e uma vez mais - em companhia de Odilon Nogueira de Matos, no dia da eleição deste querido amigo - e recordo com saudade a permanente afabilidade e generosidade de trato, que lhe eram peculiares. Permito-me acrescentar ainda outra recordação pessoal; em casa de amigos comuns, com minha esposa e filha, tive a alegria de ser apresentado à sua extraordinária esposa, Da. Maria Isabel de Macedo Soares Leite Cordeiro, Da. Bellah, talentosa e fecunda escritora de livros infantis e juvenis, que escreveu seus primeiros livros na idade de doze anos e continuou a sua atividade literária ao lado do marido por anos afora. Ofereceu na ocasião à minha filha, que então contaria uns onze anos, três de seus livros encantadores, A Pedra e o Vento, Conto de Natal e Broto, Forno e Fogão. A ela rendo neste momento as minhas melhores homenagens.

A invulgar estatura moral e intelectual do meu antecessor redobra a minha responsabilidade, quando tento traçar-lhe o perfil nesta Casa que é a sua, e que realmente, graças a ele, adquiriu algumas das mais atraentes feições que hoje ostenta. Eis uma verdade que se revelou de imediato ao acadêmico estreante, nas impressões trocadas convosco. Realmente senti a admiração unânime pela soberba figura humana que a Academia acabava de perder, ouvi o elogio altissonante de sua ponderação e cultura, tal como logo depois enfatizado por Lycurgo de Castro Santos Filho, em comovente necrológio, reproduzido no Correio Popular de Campinas, de sua acuidade de observação e pesquisa, bem como de sua sagacidade e preparo intelectual, ressaltados por Ferraz do Amaral, no Diário Popular. Ademais, já constatara à saciedade a elegância de seu estilo e a pureza do vernáculo na leitura de seus trabalhos. Aumentou desta maneira, e muito, a carga decorrente da posse nesta Cadeira, pois implica em tentar o impossível: suceder dignamente a um homem de tantas virtudes. Reafirmo aqui a disposição ao trabalho, e nada mais posso dizer, pois ultra posse nemo obligatur.

José Pedro Leite Cordeiro nasceu em Campinas, aos 14 de julho de 1914, realizou seus estudos primário e ginasial em Santos e São Paulo e, ainda colegial, foi redator de O Liceu, jornal estudantil do Colégio Rio Branco. Ingressou na Faculdade de Medicina em 1932, e em 1937 - ao final do curso - aperfeiçoou-se em técnica cirúrgica e cirurgia experimental, tendo sido assistente-voluntário do afamado professor Benedito Montenegro, catedrático de Clínica Cirúrgica. Ali também deve ter desenvolvido seu gosto pelos estudos humanísticos, pois a Faculdade de Medicina hospedou, após 1935, e durante os três últimos anos de Medicina de Leite Cordeiro, a recém-criada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, ocasião em que a atmosfera da Casa de Arnaldo Vieira de Carvalho fervilhava com o intercâmbio de planos e idéias entre estudantes das várias áreas do saber. Foi essa, aliás, a idéia fundamental a presidir à criação de nossa Universidade em 1934, hoje infelizmente quase posta de lado pela imposição das circunstâncias. Em 1946, José Pedro Leite Cordeiro foi nomeado Chefe da Clínica Venereológica do Hospital Municipal de São Paulo e, em 1952, deslocou-se a Paris para renovado curso de especialização e pesquisas médicas. Não havia, nesse entretempo, descurado de sua atividade historiográfica. Já em 1944 fora eleito para o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, ingressou no Instituto Genealógico Brasileiro e tornou-se membro da Sociedade Brasileira de Geografia. No ano seguinte viria a pertencer ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, à Sociedade de Geografia de Lisboa; em 1947 ingressou no PEN Clube do Brasil e em 1948 foi co-fundador da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Além disso, e graças aos seus trabalhos desenvolvidos na área de ciências humanas foi convidado a pertencer a mais uma dúzia de instituições nacionais e internacionais de relevo, a lecionar na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e em breves anos tornou-se conhecido como um dos mais destacados especialistas em história brasileira. Seguiu na sua obra o famoso preceito lusíada: "Não me mandas contar estranha história / Mas mandas-me louvar dos meus a glória". Sua bibliografia é impressionante: além de vinte ensaios, artigos e teses na área médica, tem mais de sessenta títulos publicados no campo da história, abrangendo livros, estudos, pesquisas, conferências, todos provas de espantosa erudição. Baseado em farta documentação, que pacientemente buscava em arquivos nacionais e portugueses, e muitas vezes resgatava a expensas próprias de lugares os mais diversos, revela o seu ex-libris exatamente as metas de sua existência: "História lucem hominibus dat - Medicina dolores sanat" lê-se ali, e realmente foi o propósito de sua vida: "projetar a luz através do culto da história, e pela medicina buscar alívio para os sofrimentos humanos".

No ensaio A Respeito da Formação da Terra (incluído no seu Tratado das Ciências Naturais), Goethe distingue entre relato cronológico e historiografia responsável: "Die wahre Geschichte zahlt nicht das Geschehene auf,sondern wie sich das Geschehene aus einander entwickelt und dars und darstellt" (A verdadeira História não enumera acontecimentos, mas demonstra de que maneira se desdobram e o que vêm a constituir"). É esse o entendimento a dominar a produção histórica de Leite Cordeiro, desde sua primeira obra maior, O Engenho de São Jorge dos Eramos (1945), trabalho que exerceu especial fascínio sobre quem vos fala, por conhecer as ruínas desse monumento dos primórdios de nossa história, que visitou em companhia do então Reitor, o insigne Professor Waldyr Muniz Oliva, muito empenhado na ocasião em dar início a uma melhor conservação do Engenho, e à construção de um Instituto de Pesquisas Históricas e Geográficas em terreno adjacente, pois seria o ambiente ideal para o trabalho de jovens pesquisadores da Universidade de São Paulo. Acontecimentos supervenientes, que escapam aos desígnios dos homens, adiaram esse plano, cuja realização seria tão desejável e que certamente constituiria homenagem suprema ao trabalho de Leite Cordeiro sobre o Engenho dos Erasmos. Provavelmente partiu seu estudo da observação de Fernando de Azevedo (in A Cultura Brasileira) de acordo com a qual "São Jorge dos Erasmos (...) abre para o Brasil o primeiro ciclo econômico e rasga as mais largas perspectivas à colonização" para debruçar-se sobre o complexo passado a posição político-econômica ímpar desse engenho, o qual - se juntamente com outros formava "pontos de apoio seguros para o estabelecimento definitivo da colonização portuguesa na América do Sul", apresenta riquíssima gama de enfoques possíveis ao historiador, uma vez que "suas grossas paredes quinhentistas abrigaram capitães-mores e vereadores, reunidos com o objetivo de solucionar as mais sérias questões da capitania florescente", conforme exemplifica: "a 10 de junho de 1588, Jerônimo Leitão, Capitão-Mor de São Vicente, presidiu, na Capela de São Jorge, ao conselho de guerra, formado pelos representantes de várias vilas, que decidiu realizar uma entrada escravagista". (pg. 21) Fica demonstrado assim, e de forma incontestável, o valor histórico do objeto descrito, que para minha área de estudos tem ainda o encanto adicional de fornecer as primeiras informações a respeito da radicação de elementos alemães no Brasil, já que o proprietário do Engenho, o flamengo Erasmo Schetz, que residia ora nos Países Baixos e ora em Portugal, tinha entre os seus feitores, em meados do século dezesseis, os alemães Pedro Roesel e Hieronymus Meyer, que constituíram família nesta área de São Vicente, e isto na época em que o forte de Bertioga era comandado por Hans Staden, autor (em 1557) da História verdadeira e descrição de uma região de selvagens, criaturas nuas, canibais assanhados, gentes que habitam o novo continente da América. Esses primeiros alemães chegaram com Martim Afonso de Sousa em 1532 ao Brasil, ocasião em que o irmão de Martim Afonso, Pero Lopes de Sousa, redigiu o curiosíssimo Diário de Navegação, reeditado em 1964, com erudito estudo introdutório de José Pedro Leite Cordeiro.

Revela as condições do litoral brasileiro, pouco depois de certo observador toscano, de nome Francesco Antonio Pigafetta, companheiro de Fernão de Magalhães naquela expedição (1519) que encontraria a passagem para o Pacífico, ter afirmado: "La terra del Brasile è di tutto abbondantissima, e si grande che supera in ampiezza la Spagna, la Francia e IItalia prese insieme. Essa appartiene al Re de Portogallo. Gli abitatori non sono cristiani, non adorano cosa alcuna e vivono secondo Iistinto naturale". Pois bem, grande parte de suas energias devotou Leite Cordeiro a historiar a penetração portuguesa, destinada a transformar essa "terra abbondantissima" do Rei de Portugal em reduto cultural e colonial português e católico, a comparar as informações dadas ao longo do tempo a este esforço conjugado de portugueses e brasileiros e a revelar a história como a verdadeira magistra vitae, conforme afirmou Geraldo Dutra de Moraes na sua saudação, recebendo o então Presidente desta Academia na Academia Cristã de Letras. Sob esse ângulo devem ser encaradas algumas das suas mais importantes produções, entre as quais avultam "A Criação da Diocese de São Paulo", "A Vida e as Realizações do Primeiro Bispo de São Paulo, Dom Bernardo Rodrigues Nogueira", "Documentos quinhentistas espanhóis, referentes à Capitania de São Vicente", os dois significativos volumes, contendo o estudo São Paulo e a Invasão Holandesa no Brasil, enfaixando talvez o que de melhor se escreveu sobre a matéria, e Brás Cubas e a Capitania de São Vicente. Tais trabalhos absorveram, portanto, parte das energias de meu ínclito antecessor, mas foi-lhe dado realizar mais, muito mais. Estudos Genealógicos, entre os quais merecem destaque "O tronco Oliveira Cordeiro no Planalto de Piratininga", "O Castelhano" (Baltasar de Godoi) e seus ilustres descendentes em Piratininga, pesquisas em torno do Pe. Manoel da Nóbrega, cujo papel decisivo como fundador de São Paulo revelou em vários escritos, divulgação histórica na qual precisa ser realçada a feliz intervenção de Tito Lívio Ferreira, e incursões na história mais recente, tais como o "Esboço do papel desempenhado, durante a Revolução de 1894, pelo Dr. Bernardino de Campos, presidente do Estado de São Paulo". Existem ainda valiosos trabalhos seus na área de literatura, assim a "Eçaiana", uma cronologia das obras de Eça de Queirós, os ensaios sobre Gonçalves Dias, José da Natividade Saldanha e Paulo Eiró, além de estudos específicos, devotados, por exemplo, a Alexander von Humboldt, a Alcântara Machado, a Armando de Arruda Pereira, ou pesquisas minuciosas, como, por exemplo, "A segunda tentativa da criação de uma Universidade no Brasil", de poucas páginas, mas acompanhadas de farta e reveladora documentação. Idealizou numerosas publicações, sendo de salientar o Catálogo de Documentos para a História de São Paulo, contendo em quinze volumes de 5.500 páginas milhares de documentos até então inéditos, bem como a edição fac-similada da coleção de oito volumes do mais que centenário Almanaque Literário de São Paulo, editado por José Maria Lisboa entre 1876 e 1885. A tudo isso se sobrepõe, pelo menos partindo do enfoque próprio desta tribuna, a criação da Biblioteca Academia Paulista de Letras, hoje contando catorze volumes, dos quais nove foram editados por José Pedro Leite Cordeiro, devendo a mesma prosseguir na reedição de obras raras ou esgotadas, do maior interesse cultural de São Paulo, bem como editar obras novas que iluminem aspectos específicos da existência paulista.

Teria sido, já se vê, empresa, condenada ao fracasso, se pretendesse configurar, no tempo necessariamente limitado deste discurso, as verdadeiras dimensões e o alcance científico e cultural da obra deste espírito privilegiado, e assim me limitei a meramente traçar-lhe um perfil genérico. José Pedro Leite Cordeiro partiu, e muito cedo partiu de nosso convívio, no raiar deste ano de 1986. Tinha e cultuava a percepção exata das belezas do mundo e das riquezas da vida, nisto fundamentando a sua profunda afirmação da existência. No final do seu ensaio a respeito das "Interpretações da História Através dos Tempos" ensina: "A filosofia e a história se interpenetram, focalizando a verdade, no anseio comum de compreenderem o Homem e o Universo. Uma não dispensa a outra, ambas se completam”. Encontrou a sua verdade e, generoso ao extremo, não guardou para si o que encontrou. Cabe a esta Academia, e em especial a esta Cadeira, levar avante o seu legado, prestando assim homenagem duradoura a esse mais significativo ocupante da Cadeira número 19



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