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DISCURSO DE POSSE
Acadêmico: José Renato Nalini
"Uma Casa de Intelectuais, num Estado como São Paulo, continua a titularizar relevância imensa. Ostenta elevada missão a cumprir e o presente clama por um protagonismo heróico. Preservar a cultura, zelar pelo idioma, disseminar o saber aplicado à transformação da vida."

Fiel cumpridor da Constituição e das leis, por vocação e por espontânea assimilação das praxes institucionais, atendo à normatividade acadêmica, para fazer jus ao título de membro efetivo deste cenáculo.

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Duílio Crispim Farina

Destinou-me a Providência suceder a Duílio Crispim Farina, expressão completa da latinidade (1), empenhado em curar corpos e almas e que honrou a Cadeira 40 de 1989 a 2003. Paulistano de nascimento, sua vida foi repetir Feijó: sou paulista por mercê de Deus e amou São Paulo, o Brasil e a Medicina sobre todas as coisas(2).

Admirei-o à distância, por tudo quanto significou para a História e para a sua arte. Produziu mais de quinhentos escritos e publicou catorze livros, dentre os quais se destacam: Esculápios portugueses das Sete Partidas, Tempo de vida, doença e morte na Casa de Bragança, Medicina no Planalto de Piratininga, Piratininga em tempos idos, Crônica da ilha de Santo Amaro ou do Guaibe e o Guarujá, Sarmiento de Gamboa no Brasil, Esculápios, boticas e misericórdias em Piratininga doutrora, Presença de França na terra brasílica, Franceses em chãos do Brasil, entre tantos outros.

Devoção a São Paulo sobrepondo-se a todos os sentimentos, resgatou preciosidades históricas destinadas ao olvido não fora a sua saga. Sobre ele, o poeta Paulo Bomfim já pronunciara: Em tudo o que escreve há uma constante patriótica, poder invocatório despertando o antigamente e dando voz ao silêncio que envolve a tradição em nossa época (3).

Encantou-me a ligação de Duílio com a terra, fio condutor deste ecológico faldistório de número 40. Da infância na chácara aos últimos anos em contato direto com o ambiente. Na verdade, um cinturão de velhas chácaras rodeou sua vocação. Em todas elas, cercado de pássaros livres como os quer a mãe natureza - presos tão-somente aos laços afetivos que as criaturas pressentem num benfeitor. Ciclo vital permeado de devotamento à arte de curar, à pesquisa histórica, ao convívio irmão.

Perfil de singular generosidade, sobre suas virtudes poderiam melhor testemunhar os quatro evangelistas da fraterna grei, por ele invocados nas horas derradeiras: Guido Arturo Palomba, Celestino Borroul, Paulo Bomfim e Paulo José da Costa Júnior. Este, em sua missa de sétimo dia, voltou a encontrar-se com a eucaristia, depois de vinte anos. Sinal de que a bondade de Duílio Crispim Farina já teria começado a operar, mal apeou-se da vida para ingressar na transcendência.

Menotti del Picchia

Paulo Menotti Del Picchia foi o primeiro titular eleito para a Cadeira 40. Ocupou-a de 1962 a 1988. Paulista e paulistano, fez Direito nas Arcadas, exerceu o tabelionato, mas foi, sobretudo, patriota, e foi poeta.

Poesia com sabor da terra, entranhada na raiz brasílica, engajada na preservação do patrimônio maior da nacionalidade: seu meio ambiente.

A saga ecológica está em sua mais divulgada invenção poética: o Juca Mulato. O poema do Brasil paulista, de racialidade impressionante (4). Juca Mulato é um caboclo “forte como a peroba e livre como o vento", torso trigueiro, narina aflante, a agilidade dum poldro, a robustez dum touro, espécie de Hércules do mato, que passa, entre cafezais verdoengos e açucenais em flor, a cavalo no seu pigarço como uma figura de bronze, o chapeirão na cabeça, a garrucha à cinta, um cigarro de palha a arder na boca. O seu corpo rítmico e forte tem "audácias de coluna e elegâncias de barco" quando do alto da montanha ataca a restinga às foiçadas ou quando, de pé, em pleno cafezal, a enxada a lampejar-lhe as mãos, sustém, sob o ouro oleoso do sol, entre enxames de moscões silvestres, a invasão mordente da aninga. Ri, em todo ele, a alegria bárbara da força. Resplandece-lhe nos olhos a alma sagrada das florestas. Todo ele esplende, todo ele canta, titã negro e pacífico, ouvindo coaxar os sapos, escachoar nos açudes o rebojo das águas, mugir ao longe as manadas ruivas e processionais dos bois. Vive no êxtase da natureza (5).

A veneração pelo ambiente é o frêmito nativo, sentimento impulsionador do herói caboclo, todo terra/floresta e rio:

“Como se sente bem recostado no chão!

Ele é como uma pedra, é como a correnteza,

Uma coisa qualquer dentro da natureza

Amalgamada ao mesmo anseio, ao mesmo amplexo,

A esse desejo de viver grande e complexo,

Que tudo abarca numa força de coesão.


Compreende em tudo ambições novas e felizes,

Tem desejo até de rebrotar raízes,

Deitar ramas pelo ar,

Sorver, junto da planta, e sobre a mesma leiva,

O mesmo anseio de subir, a mesma seiva,

Romper em brotos, florescer, frutificar!”(6)


Amor à terra tão potente e de intensidade tamanha, que fez Juca Mulato esquecer o amor carnal de remota concretização. O chamado da natureza supriu o desejo impossível. Muitas vezes, a vida ensina que o melhor é esquecer.

Juca Mulato esquece! Mas Juca só poderá esquecer, fugindo. Abraça-se aos troncos hirsutos que o viram nascer, beija o ventre da terra que o gerou, pensa na fuga ou na morte. É então que a alma das cousas, que o gênio da floresta, que a voz profética do silêncio fala a esse "Peer Gynt" caboclo: "Tu queres nos deixar, filho desnaturado?". Um cedro soluça olhando para ele: "Foi de um galho meu que fizeram o teu berço!". A torrente diz-lhe jorrando: "Fui eu, Juca, que dei a água do teu batismo!". A floresta inteira prende-o, enleia-o, reclama-o, ergue-o na exaltação da força e da vida: "Nós somos a lenha que te aquece! Somos nós o cabo da tua enxada, o arco do teu bodoque, a grade da tua arapuca, o varejão do teu barco! Juca, nós somos a tua alma e, na terra natal, a própria dor dói menos!". Juca Mulato, do alto da montanha, ereto no cavalo como um deus de bronze, olha o cafezal verde, as plantas alinhadas, sente o bafo morno e dionisíaco da terra, vê todo o labor da empreitada, as enxadas faiscando ao sol, o céu em chamas, a vida em germinação e pouco a pouco, resignado, tranqüilo - volta, ressurge, vive, esquece(7).

O amor, matriz da vida, a multiplicar seres e coisas, numa força eterna, foi o móvel da fecundíssima existência de Menotti. Amor, usina do sonho, para o qual todas as almas nascem.

O sonho possível foi companhia fiel de Menotti. Já seu herói reconhecera: Se minha alma surgiu para a glória do sonho, o meu braço nasceu para a faina da terra(8). O sonho a embalar todos os projetos: E é tão doce sonhar!... A vida, nesta terra, Vale apenas, talvez, pelo sonho que encerra (9). Sonho que justifica a existência do poeta: Como é belo criar! Como é bom ser poeta! Desfazer o imediato, a certeza concreta, toda a limitação, o trivial, o bisonho, dilatando ao infinito as fronteiras do sonho!(10)

Sonhador, sim, mas sem comprometer o sentido de realidade. Sonho que o predispõe à luta. Homem de muitas lutas. Combateu na qualidade de arauto do modernismo, e foi lutador de coragem suficiente para rever, quando preciso, suas posições. Reformulou, assim, a crítica ao trabalho de Anita Malfatti, e foi capaz de declarar, em ato de contrição: Aqui fica, apagada e rouca, minha palavra de penitência e de defesa; digo-a por um dever de honestidade e de justiça, porque essa arte, por sugestão e por mal conhecê-la, eu também, como muitos, berradamente a neguei(10). E resgata o valor da jovem injustiçada: Anita Malfatti foi chefe da vanguarda na arrancada inicial do movimento modernista da pintura de São Paulo. Sua arte mereceu a honra consagradora do martírio: foi recebida a pedrada(11).

Pedradas, ontem como hoje, prêmio reservado a quem se opuser à inércia. Recompensa destinada ao desafiador do marasmo. Resposta a mais freqüente a quantos questionarem a congérie de irracionalidades preservadas em tanta empresa humana.

Perfilhou Menotti junto aos ousados responsáveis por novos paradigmas na arte brasileira. Impulsivo, fervoroso defensor de suas causas, poupou-o o temor de criticar: os maiores inimigos dos grandes poetas e prosadores paulistas são os próprios paulistas e não hesitou em afirmar: em matéria de arte, a maioria popular está no período da pedra lascada(12).

Desafiador, esse Menotti. Compara a caravana dos paulistas rumo à conquista da adesão carioca para o movimento modernista a uma bandeira futurista. Incita-os a prosseguir, a despeito da maledicência e da incompreensão:

Bela coragem! Eu, que sou também bandeirante desse grupo galhardo, sigo-os com olhos cheios de amor, inveja e susto... A façanha é ousada! Em lugar das onças, das tribos selvagens, das serpentes, que se atravessavam no caminho das entradas como o grito de revolta da terra virgem contra a audácia dos conquistadores, a bandeira futurista terá que afrontar os megatérios, os bizontes, as renas da literatura pátria, toda a fauna antediluviana, que ainda vive, por um milagroso anacronismo...(13).

Pretendeu modernizar também a vida pública. Engajou-se na façanha paulística de 9 de julho de 1932 e até escreveu, com sôfrega paixão, uma obra destinada a retratar a epopéia: A revolução constitucionalista foi um desabafo. Foi a formidável descarga nervosa de sete milhões de criaturas... A vitória, em si mesma, não devia ter egoística finalidade, porque os destinos da nação é que deviam marcar o rumo fatal das coisas(14). A tese paulista foi vitoriosa. A afeição ao Estado de Direito, o respeito à Carta Magna, sentimentos que sobrepujaram o apego à vida.

Sob concepção de tal heroísmo, ... a vitória paulista foi integral. Um novo espírito se formou no seio da sua população, mais moço, mais consciente e mais combativo do que nunca. Educou sua vontade e enriqueceu sua experiência. Libertou-se da sobrevivência dos arcaísmos, estimulou sua ousadia na análise, libertou-se de preconceitos mortos, saiu, enfim, da velha carapaça artificial que, como um invólucro de chumbo, entibiava sua energia e limitava suas iniciativas. A verdadeira vitória reside em São Paulo ter entrado na posse consciente de si mesmo e essa vitória vale por todos os triunfos que pudesse ter obtido pelas armas(15).

Nada mais oportuno, nada mais atual do que reler Menotti. Nada mais adequado - nesta quadra histórica - do que se impregnar de seu entusiasmo heróico, a nós, que nos é dado patinar numa turbulenta maré de reformas(16). É preciso repensar, e mergulhar no presente, o real significado de sua afirmação: A nossa independência política não nos alforriou numa independência mental(17).

Houve efetiva ruptura das amarras da subalternidade? Por que teríamos continuado com mentalidade de colônia em tantos aspectos ainda? Por que a ânsia da cópia, do modismo, da subserviência a modelos exóticos e desvinculados de nossas raízes? Por que o receio de ser original e de assumir o compromisso com o genuíno? Por que o pavor de encarar o futuro?

É tempo de interromper a repetição perene de uma mesma tonalidade cromática e sonora, como se o passado fosse o grande sino tangido pelos gênios de outrora e vivêssemos eternamente da sua ressonância, dos seus ecos e da saudade dos seus ecos...(18). Impõe-se estar aberto aos reclamos da contemporaneidade. Não só os vocábulos caem, chochos e secos, da árvore do vocabulário. Com as transmutações da ética e com as invenções do gênio industrial humano, os sentimentos mudam, alguns surgem novos, outros desaparecem. (..) É preciso reagir. É preciso esfacelarem-se os velhos e râncidos moldes..., reformar-se a técnica, arejar-se o pensamento surrado no eterno uso das mesmas imagens(19).

Isto ainda vale, para tantas instituições! Volta Menotti, e inspira seus compatrícios!

José Feliciano de Oliveira

Meu saudoso antecessor, Duílio Crispim Farina, ao contemplar o fundador da Cadeira 40, delineou em preciso traço a delicada imagem do cientista jundiaiense: Estudar, conhecer José Feliciano de Oliveira, é redescobrir um dos nomes tutelares da Educação e da Instrução Pública. Molde de antigo paulista, simples, alheio aos mundanismos efêmeros, reto, probo, dignidade integral, coerente com seu pensar e sua dialética. Figura talhada para o mármore do justo culto e permanente respeito.(20)

Menino pobre, sozinho preparou-se aos estudos secundários, completados na Escola Normal da Praça. Antes disso, aos quinze anos, fundara em Jundiaí o Gabinete de Leitura Rui Barbosa, ainda existente.

Professor de Astronomia, de Mecânica e Matemática, Português, Latim e Francês, idioma que dominava perfeitamente. Ensinou História da Língua e devotou-se desde cedo ao positivismo de Augusto Comte. E com tal afinco e ardor que, ainda na juventude, foi cognominado Testamenteiro do Mestre.

Revolucionário ao propugnar o conteúdo ideal do processo educativo, sofreu revezes e perseguições. Teve extinta sua Cadeira de Astronomia e recusada a oferta - sem ônus para o Estado - de preservação de seu Observatório Astronômico.

Sim, construíra às suas expensas torre imensa em sua casa, lá pelos lados da Consolação. Ali, munido de vasta luneta, sonhava e batalhava por um Brasil melhor, observava o céu e propiciava a seus alunos a contemplação do firmamento.

A desilusão fá-lo tornar a Paris, em exílio voluntário, onde permanece até 1958. Ali já estudara por um ano em 1902 e torna-se refúgio definitivo a partir de 1910. Torna-se, então, o brasileiro mais influente em França e, entre 1934 e 1939, ministra nove cursos e doze conferências. Multiplicidade de temas ocupa sua vasta agenda de eventos na Sorbonne, na Faculdade de Letras e na de Ciências, no Palais de la Mutualíté, no Instituto de História das Ciências anexo à Universidade de Paris e no Colégio Livre de Ciências Sociais, de que se torna catedrático.

Sentindo o momento de seu encontro com o Criador, retorna ao Brasil para morrer em 1962 e ser enterrado no Cemitério Nossa Senhora do Desterro, em Jundiaí. Então com dezesseis anos, estive entre os conterrâneos que levaram suas despedidas ao famoso filho da terra.

Franzino, cabelos totalmente brancos, óculos azuis. Modesto por excelência. Tão modesto, que só aceitou o convite de Joaquim José de Carvalho, o artífice da Academia Paulista de Letras, para ser um de seus pais fundadores, se lhe fosse destinada a Cadeira de número 40. A última, na ordem numeral, desta Casa de Imortais.

O episódio é por ele narrado no livro José Bonifácio e a Independência - O homem do Fico e o verdadeiro Patriarca, revisitado por Duílio Crispim Farina. Ouçamos José Feliciano de Oliveira: Insistências do Dr. J. J. de Carvalho forçaram-me então a entrar na Academia de Letras de São Paulo. A condição foi a de me reservarem o último lugar, o quadragésimo. Pensava que o entusiasta fundador do sodalício literário não acharia em São Paulo 39 renomes ou candidatos às láureas acadêmicas. Enganei-me. No fim de algumas semanas, o dr. Carvalho apareceu-me jubiloso em casa, com a lista de 39 acadêmicos, e o 40° lugar reservado para mim. Não me inscrevi logo. Quis examinar a lista, para achar incompatibilidades impedintes. Não as achei. Mas dei logo com os nomes de meu querido amigo e correligionário dr. Luiz Pereira Barreto e do ilustre sacerdote Francisco de Paula Rodrigues, o popular "Padre Chico ", que me honrava com sua particular amizade; e que muito, muito estimava. A saudade me faz rever sua amical e suave imagem, na Estação da Luz no dia de minha partida para meu voluntário exílio. Não hesitei mais, vendo-me em tão honrosa companhia. Inscrevi-me e escolhi José Bonifácio como patrono de minha cadeira, com a promessa de escrever uma monografia glorificando o Patriarca(22).

Cumpriu o avençado. Honrou a Academia Paulista de Letras por 53 anos, desde a fundação, em 1909, até 1962.

José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca

Eis-me, finalmente, a adentrar ao santuário cujo orago cívico é o santista José Bonifácio de Andrada e Silva.

Faço-o com respeitosa reverência e imbuído de um sentimento de redescoberta, tal como o descreve Gilberto Freyre: Cada dia, encontro novos motivos para ver em José Bonifácio a maior, a mais alta, a mais completa figura brasileira de todos os tempos(23)

Louva-se em José Bonifácio o protagonismo sem similar na construção da História do Brasil, o seu papel fundamental no grito de independência, a sua lealdade ao primeiro Imperador e o seu desprendimento. A ponto de aceitar a tutela do filho - Pedro II -, mesmo após colher a ingratidão do pai - Pedro I.

Tais facetas não completam a robusta consistência do personagem. José Bonifácio foi muito além de ter sido o herói da independência. Comoveu-me descobrir nele o primeiro ecologista brasileiro. Homem de intensa ligação com a terra, preocupado com as matas nativas e empenhado em reflorestar.

Em sua obra Memória sobre a necessidade e utilidades do plantio de novos bosques em Portuga l- particularmente de pinhais nos areais de beira-mar; seu método de sementeira, costeamento e administração, explica sua devoção aos labores da natureza.

Na linguagem da época, aduz pitorescamente: Não se me estranhe que sendo metalurgista de profissão, ouse também tratar nesta Memória de objetos de Lavoura. A Agricultura, tão necessária quanto aprazível e honrosa, sempre atraiu a minha atenção e amor. No Brasil, durante os meus estudos em Coimbra, nas minhas peregrinações pela maior parte da Europa, depois da minha volta ao Reino, nunca a deixei de estudar, quanto em mim coube. Em o ano de 1802 e seguintes, fiz rotear uma grande parte da charneca inculta dos montes de Santo Amaro pertencente à Real Mina de Buarcos; onde além de um pinhal de mais de 40 geiras, faço cultivar trigo, centeio, cevada, aveia, milho, batatas, favas, nabos, e prados artificiais para o sustento do gado daquela Mina. Não contente com a direção desta só lavoura, quando fui ler a minha Cadeira em Coimbra, arrendei no Alegue uma grande Quinta (e bem cara) com terras de pão, olivais, vinhos, pomares, hortas e insua para mais a meu saber aprender as miudezas da nossa Agricultura, ajuizar de seus lucros e fazer novas experiências(24).

Nesse estudo, prega a necessidade absoluta de semear e plantar matas e arvoredos em todos os baldios, sobretudo nos cumes e ladeiras. Sem a mata generosa, são progressivamente esterilizados terrenos outrora produtivos. Considerava tão urgente a providência naquela época - 1812, há quase duzentos anos! - que não hesitava em conclamar os brios lusitanos: É esta necessidade tão manifesta hoje em dia; e é tal o esmero, que há mais de meio século tem mostrado a este respeito as Nações cultas da Europa, que para nos animarmos a imitá-las, basta pequeno patriotismo e uma faísca de senso comum(25).

Os proveitos sem conta, que de tão heróica empresa(26) deveria tirar o reino, seriam naturais e cósmicos, ou políticos. Naturais seriam o melhoramento total da terra e clima, progressivamente piorados. Alertava que os países que perderam suas matas encontravam-se quase todos estéreis e sem gente. O mesmo já sucedia em Portugal: Areais imensos, pauis e brejos cobrem sua superfície. Que lástima não é, que um tão belo país, por desmazelo emperrado de muitos de seus filhos, se vá reduzindo a um esqueleto de charnecas descarnadas, e de cabeços escalvados; quando pela temperatura do seu clima e pelas desigualdades da sua superfície, podia ter quase todas as árvores próprias dos climas, e quentes e frios, do nosso Globo(27).

Na condição de brasileiro, qualificada testemunha da cruel exploração extrativista em que consistiu a colonização, com seus sucessivos ciclos devastadores, evidenciava insólito apreço à floresta: Quais outras produções da Mãe Natureza devem merecer maior atenção ao filósofo e ao estadista, do que as matas e arvoredos? Árvores, lenhas, madeiras: estas sós palavras, bem meditadas e entendidas, bastam para despertar a nossa estudiosa atenção e para interessar vivamente a nossa sensibilidade(28).

Sua visão da irresponsabilidade humana face ao ambiente preconizava, no limiar do século XVIII, a consciência que só viria a tomar forma no século XX: Graças porém à Divindade, eram então imensas as matas: mas com o andar dos séculos esses ricos tesouros com que nos tinha dotado a mão liberal da Natureza foram diminuindo e acabando pelo aumento da povoação e agricultura; e muito mais pela indolência, egoísmo, e luxo desenfreado de precisões fictícias, que destruíam em um dia a obra de muitos séculos. É já tempo de acordarmos de tão profundo sono e de refletirmos seriamente nos males que sofre Portugal pela falta de matas e arvoredo(29).

Idêntico brado não está a servir para a situação brasileira, quase duzentos anos depois desse clamor? Não merece igual lamento a situação agonizante da mata atlântica deste gigante que se continua a saquear, enquanto narcotizado em berço esplêndido? Arrefeceu a cupidez, atenuou-se a insensibilidade humana ou recrudesceram ambas no terceiro milênio?

E no entanto, sem matas, a umidade essencial à vida vai faltando. A terra se faz árida e nua. Sem a mata, secam os rios e só borrascas e trovoadas arrasam as ladeiras, areiam os vales e costas e inundam e subterram as searas(30). Sem a mata, novo clima e nova ordem de estações estragam campos outrora férteis e temperados(31).

Somem as matas e em seu lugar as enfermidades. Sem matas, quem absorverá os miasmas dos charcos? Quem espalhará pelo estio a frescura do inverno? Quem chupará dos mares, dos rios e lagoas os vapores, que em parte dissolvidos e sustentados na atmosfera caem em chuva, e em parte decompostos em gases, vão purificar o ar, e alimentar a respiração dos animais? Quem absorverá o gás ácido carbônico, que estas expiram, e soltará outra vez o oxigênio, que aviventa o sangue e que sustenta a vida?(32)

Há muito desapareceu a caça, que fartava o rico e o pobre. Falta a fertilização natural, que subministra diuturnamente as folhas e resíduos. Ausentes as matas, minguou a fertilidade da terra; e a lavoura e a povoação definharão necessariamente(33).

O Patriarca da Independência era também o Patrono da Ecologia. Apercebeu-se da realidade holística ainda hoje ignorada por tantos eruditos. Ousava proclamar em 1812: (..) Assim, tudo é ligado na imensa cadeia do Universo; e os bárbaros que cortam e quebram seus fuzis, pecam contra Deus e a Natureza e são os próprios autores de seus males(34).

Senhor Presidente, senhores Acadêmicos, Amigos do meu coração:

Talvez sem êxito, tenha tentado regatar a memória de meus antecessores.

Cresci ao entregar-me a tal missão.

Depois do fio condutor da paixão pela natureza, fui encontrar o sonho, acalentado por todos eles. Sonho que cada qual se empenhou em tornar realidade, numa peleja desigual contra a ignorância tímida ou desleixada, contra o obscurantismo de algumas toupeiras, que temem ou não podem suportar a luz(35). Mas, como eles, acredito que a vitória não pode ser da ignorância, nem hão de vencer as mediocridades.

Apreendi que os meus vates semearam idealismo e colheram incompreensão. Não se desiludiram por isso. O desapego era atributo comum aos quatro grandes lumes antecessores. Na voz do patrono, é preciso ter presente a sábia advertência: nunca dei peso ao fumo das grandezas humanas(36). Pois nunca as honras e os títulos tiveram valia para o homem livre e virtuoso(37).

Atenderam à vocação interior, deles a reclamar doação em plenitude. Identificaram o apelo da consciência por bem saberem que em vão o sábio ama a paz e o retiro: deve aos outros, a quem pode guiar, seus profundos pensamentos e seu engenho regenerador. Se a razão desenganada busca viver longe das paixões e dos acasos da fortuna, e ri das vaidades humanas, há circunstâncias que reclamam seus serviços à humanidade(38). Ou, conforme já se afirmara: todo cidadão se deve aos seus concidadãos, conforme a sua esfera; e quando tem a sublimidade de pensar e querer, o bem da espécie inteira é o seu fito(39).

A essa atitude perante a vida se pode chamar singelamente uma conduta ética irrepreensível.

Mergulhar nessas vidas impregnadas de doação, devotamento, desinteresse, desapego, ternura para com as criaturas e para com o ambiente, foi um profundo exame de consciência.

Depois dele, virá o propósito de não deslustrar a senda gloriosa.

É hora de encerrar.

O que significa para o jundiaiense, filho das fraldas do Japy, ingressar nesta Academia Paulista de Letras?

Significa percorrer de volta cinqüenta e sete anos de existência e reencontrar, na primeira metade do século passado, a influência da mãe que o despertou para a mágica da leitura.

Senhor Governador: tenho o privilégio de ainda ter mãe: Benedita Barbosa Nalini. Foi aí que tudo começou.

A cada mês, um novo livro premiava o bom êxito obtido na Escola Paroquial. Livro devorado num amor crescente, até que o menino, já então com o produto do seu trabalho, pudesse continuar uma coleção que ainda continua e nunca mais terminará. Legado que vou transmitir, com especial recomendação de zelo, aos meus quatro filhos: João Baptista, José Renato, Ana Beatriz e Ana Rosa.

Significa a gratidão às primeiras mestras, freiras vicentinas, secundadas pelos sacerdotes salvatorianos, que o fizeram persistir na incessante busca do saber.

Significa a constatação de tantas ausências físicas, mas presenças consistentes nalma, que o incentivaram e o confortaram e lhe estenderam a mão.

Significa atribuir a Rubens Teixeira Scavone o primeiro aceno para ocupar uma Cadeira neste cenáculo, sonho aparentemente intangível. Depois reconhecer o entusiasmo de alguns acadêmicos e, finalmente, identificar a bondade de tantos outros. Enumerá-los é risco de incorrer em injustiça e nada mais trágico, para um juiz, do que cometer iniqüidade.

Cada qual sabe da gratidão e do reconhecimento que a todos devoto.

A eles, irmãos completíveis, só posso prometer - além do meu carinho fraterno - estrita fidelidade aos ideais da Academia.

Uma Casa de Intelectuais, num Estado como São Paulo, continua a titularizar relevância imensa. Ostenta elevada missão a cumprir e o presente clama por um protagonismo heróico. Preservar a cultura, zelar pelo idioma, disseminar o saber aplicado à transformação da vida.

Inspiram-me alguns valores, dentre os inúmeros cultivados por meus antecessores. O respeito à natureza, doação gratuita da Providência, a continuada busca de uma ética irrepreensível e a devoção ao direito.

Reflorestar a terra e as mentes, como quis José Bonifácio. Lutar para reformar os homens e as instituições, a cruzada de Menotti. Respeitar o próximo e todos os viventes, consoante viveu Duílio. Sem deixar de alimentar os sonhos e de contemplar as estrelas, lição de vida de José Feliciano.

Existe paradigma existencial de maior nobreza?

José Bonifácio de Andrada e Silva, José Feliciano de Oliveira, Paulo Menotti del Picchia, Duílio Crispim Farina:

Estais ainda conosco e deste convívio vosso espírito inspirador não se afaste jamais!

Sabeis, do etéreo, que não sou digno de entrar nesta morada. Acompanhai-me, porém, na trajetória que hoje tem início, e me animará a esperança de que não irei decepcioná-los, nem aos irmãos que, presentes ou não, em nossos ideais comuns acreditaram!

Muito Obrigado.

__________________________

(1)PALOMBA, Guido Arturo. Oração de saudação a Duílio Crispim Farina, em sessão solene da APM, em comemoração ao Dia do Médico, Suplemento Cultural da APM.

(2)PALOMBA, Guido Muro. Idem, ibidem.

(3)Saudação do Acadêmico PAULO BOMFIM ao empossando Acadêmico DUÍLIO CRISPIM FARINA. Revista da Academia Paulista de Letras, n. 108, novembro de 1996, p. 131.

(4)Foi OSWALD DE ANDRADE, no artigo O meu poema futurista, Jornal do Comércio de 27.5.1921, que detectou a racialidade impressionante de Juca Mulato - o poema do Brasil paulista... , apud MÁRIO DA SILVA BRITO, História do Modernismo Brasileiro, I - Antecedentes da Semana de Arte Moderna, 4ª ed., Civilização Brasileira, 1974, Rio de Janeiro, p. 228.

(5)DANTAS, Júlio. Na apresentação de Juca Mulato, in MENOTTI DEL PICCHIA, Poemas, obras completas, vol. II, A Noite Editora, São Paulo, 1946.

(6) PICCHIA, Menotti del. Juca Mulato, op.cit., p. 16.

(7)DANTAS, Júlio. Op.cit., idem, ibidem.

(8)PICCHIA, Menotti del. Juca Mulato, idem, p. 60.

(9)PICCHIA, Menotti del. Máscaras, op.cit., p. 66.

(10)PICCHIA, Menotti del. O Amor de Dulcinéia, op. cit., p. 123.

(11)BRITO, Mário da Silva. História do Modernismo Brasileiro, I - Antecedentes da Semana de Arte Moderna, 4a ed., Civilização Brasileira, 1974, Rio de Janeiro, p. 67.

(12)PICCHIA, Menotti del. Apud MÁRIO DA SILVA BRITO, op.cit., idem, p. 72.

(13)PICCHIA, Menotti del. Artigo: O Pintor Pedro Bruno, Correio Paulistano, 10.5.1920, in MÁRIO DA SILVA BRITO, op.cit., idem, p. 154/155.

(14)PICCHIA, Menotti del. A Bandeira Futurista, Correio Paulistano, 22.10.1921, in MÁRIO DA SILVA BRITO, op.cit., idem, p. 316/317.

(15)PICCHIA, Menotti del. A Revolução Paulista, RT, 4ª ed., São Paulo, 1932, p. 237/238.

(16)PICCHIA, Menotti del. Idem, p. 239/240.

(17)Título de um artigo de MENOTTI DEL PICCHIA no Correio Paulistano de 24.1.1921.

(18)PICCHIA, Menotti del. Na maré das reformas, in MÁRIO DA SILVA BRITO, op.cit., idem, p. 190/191.

(19)PICCHIA, Menotti del. Idem, ibidem.

(20)PICCHIA, Menotti del. Idem, ibidem.

(21)FARINA, Duílio Crispim. Discurso de Posse, Revista da Academia Paulista de Letras, n. 108, novembro de 1996, p. 111.

(22)FARINA, Duílio Crispim. Dr. Joaquim José de Carvalho - Artífice da Academia Paulista de Letras, Edicon, São Paulo, 1999, p. 83/84.

(23)SOUSA, Otávio Tarquínio de. José Bonifácio, Nova Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1972, apresentação.

(24)SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Memória sobre a necessidade e utilidades do plantio de novos bosques em Portugal - Particularmente de pinhais nos areais de beira-mar; seu método de sementeira, costeamento e administração, Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, 2ª edição, Rio, MCMXXV, p. 18/19.

(25)SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Op. cit., idem, p.21.

(26)SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Op. cit., idem, ibidem.

(27)SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Op. cit., idem, ibidem.

(28)SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Op. cit., idem, p. 22.

(29)SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Op. cit., idem, ibidem.

(30)SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Op. cit., idem, ibidem.

(31) SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Op. cit., idem, ibidem.

(32)SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Op. cit., idem, ibidem.

(33)SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Op. cit., idem, ibidem.

(34)SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Op. cit., idem, p. 23/24.

(35)SOUSA, Otávio Tarquínio de. Op. cit., reproduzindo frase de José Bonifácio em discurso feito em 1815, na Academia das Ciências de Lisboa, p. 44.

(36)SOUSA, Otávio Tarquínio de. Op. cit., p. 220.

(37)SOUSA, Otávio Tarquínio de. Op. cit., p. 228.

(38)SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Apud OTÁVIO TARQUÍNIO DE SOUSA, op.cit., p. 82.

(39)SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Apud OTÁVIO TARQUÍNIO DE SOUSA, op.cit., idem, ibidem.





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