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DISCURSO DE RECEPÇÃO PELO ACADÊMICO MIGUEL REALE
Acadêmico: Bolívar Lamounier
O acadêmico Miguel Reale destaca a importância das ciências políticas e a trajetória do confrade Bolivar Lamounier.

Ilustres Confrades
Gentilíssimas Senhoras e Senhores
Caro amigo Bolivar Lamounier

Singular o destino da Ciência Política. Sendo uma das mais antigas das ciências, nem sempre tem sido cultivada ao longo dos séculos, chegando mesmo a entrar em plena eclípse em certos períodos históricos, como se deu, por exemplo, na Idade Média, quando somente ressurgiu, como parte da Ética, graças à Escolástica e sobretudo a Tomás de Aquino.

Nada de extraordinário que os estudos políticos tenham merecido especial atenção por parte do mestre da Summa Theologica, pondo à luz de novos prismas a problemática agostiniana da Civitas Dei, pois Santo Tomás volta as raízes filosóficas de Aristóteles, o reconhecido fundador da Política como ciência, vista por ele como a maior das ciências do homem, por se referir à polis, ao Estado-nação do mundo grego, e, desse modo, não ao bem de cada um, mas ao bem comum, como condição primeira dos direitos e deveres fundamentais dos seres humanos.

O que impressiona na visão aristotélica, nesse como nos demais campos do conhecimento, é o seu constante sentido de integralidade, jamais se deixando dominar pelo valor do que é particular e efêmero. Natural, pois, que concebesse a Política como uma ciência-matriz, condicionadora de todos os conhecimentos a respeito do homem, animal político por natureza como ele ensinou, ou, como preferimos dizer hoje em dia, animal social por natureza, com ciência e consciência da vivência como convivência, do existir como coexistir.

Mas, foi preciso chegar-se ao Renascimento para voltar-se a recuperar o sentido terreno da vida política, de um lado, com Nicolò Machiavelli, para quem ela é o assunto supremo, e, de outro, com Jean Bodin, que procura conciliar a Civitas Hominis com a Civitas Dei. E ficaram, assim, firmadas as duas coordenadas da compreensão política, que pode tanto se enclausurar na polis, como transcendê-la, em função dos múltiplos valores com que se configura a sociedade civil no mundo da cultura.

Dir-se-á que Machiavelli não fez senão tratar de política, pondo metodologicamente entre parênteses as demais componentes do homem, mas é uma inverdade em relação a um pensador que jamais desdenhou dos deveres do espírito, sabendo levar em conta também as finalidades transpolíticas, como o revela nos seus admiráveis comentários às Décadas de Tito Lívio, mas não há dúvida que em seus escritos se inocula a conhecida proclamação "politique tout d"abord", a política antes de tudo o mais.

É claro que não teria sentido traçar, neste momento, nem sequer bosquejar, a História da Ciência Política, ou, mais amplamente, da "Política" como conceito e como idéia, isto é, como fenômeno e como teoria da coexistência ordenada e pacífica dos seres humanos, indagando do que dela disseram pensadores como Machiavelli e Espinosa ou estadistas como o cardeal Mazarino ou Churchill, para não falar dos grandes especialistas como Tocqueville, Max Weber ou Karl Schmitt.

O que desejo é apenas ressaltar que houve, sem dúvida, progressiva cientificação da problemática política, não no sentido de que o cientista político deva situar-se insensivelmente perante os fatos políticos, como se tratasse de coisas, mas sim no sentido de que as ações políticas, os seus processos e fins, devem ser analisados objetivamente, com a mesma neutralidade metódica que possibilita e assegura as conquistas do conhecimento positivo com uma razoável margem de certeza e segurança.

Foi esse imperativo gnoseológico que veio dar à Ciência Política atual uma estrutura e feição por assim dizer objetiva e isenta, o que não significa que ao politicólogo, quo tale, caiba ficar insensível em relação aos dramas humanos, pois são estes mesmos que, para serem conhecidos com a certeza possível, exigem atitude serena e despreconcebida do investigador imparcial.

É nesse contexto que, penso eu, se situa a obra política do novo acadêmico Bolivar Lamounier que vem enriquecer os quadros culturais de nossa Academia, como o demonstra o seu "curriculum vitae", quer no que se refere aos títulos universitários, como o de Mestre (Master of Arts) e Ph. D. pela Universidade da Califórnia, Los Angeles; quer por seus livros, como A democracia Brasileira no limiar do século 21, e Os Partidos e as Eleições no Brasil, este em co-autoria com Fernando Henrique Cardoso, quer ainda por sua constante atividade no setor pedagógico ou em funções político-administrativas do maior relevo, notadamente como pesquisador senior no CEBRAP - Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, e como diretor do IDESP, Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo.

Seu saber político é de tal ordem que não ficou circunscrito ao Brasil, tendo Vossa Excelência sido convidado a participar de Comissões e Seminários de significativa relevância, nos Estados Unidos da América, na Alemanha, no Uruguai e na Tailândia, tornando-se membro efetivo de entidades tão representativas como o "Painel-Consultivo Institucional" do Journal of Democracy, revista acadêmica, editado em Washington e que tem por fim analisar a situação da democracia no mundo, sendo pesquisador visitante do Institut für Politische Wissenchaft, da Universidade de Heidelberg.

Prefiro, no entanto, nesta oportunidade, a um só tempo de sentido cultural e afetivo, dar o meu depoimento sobre sua atuação no seio da "Comissão Provisória de Estudos Constitucionais", da Presidência da República, ao depois denominada Comissão Afonso Arinos, de que ambos participamos.

Em duas questões conexas, Vossa Excelência confirmou sua experiência e amplo descortino, no que se refere ao número de Deputados federais, bem como à representação de cada Estado na respectiva Câmara.

Tratava-se, como se vê, de um problema crucial em nossa estrutura federativa, vítima de alarmante desigualdade, desde o Art. 58 da Constituição de 1946 que atribuiu a cada Estado e ao Distrito Federal o mínimo de sete deputados, que o presidente Figueiredo houve por bem elevar para oito.

Pelo menos a Carta de 1946 não fixava o máximo de representação, estabelecendo apenas que o número de deputados seria fixado por lei, não excedendo um para cada cento e cinqüenta mil habitantes até vinte deputados e, além desse limite, um para cada duzentos e cinqüenta mil habitantes.

A consumação da desigualdade mais aberrante entre as unidades federativas deu-se, no entanto, com a Carta de 1969 que fixou em sessenta o número máximo de deputados, o que atingiu em cheio o Estado de São Paulo, o de maior população e de maior economia e cultura.

Não por bairrismo irresponsável, mas por nímio sentido de justiça, V. Excelência propôs, com aprovação unânime, novos critérios judiciosos e equânimes para a representação dos Estados na Câmara dos Deputados, atendendo, de um lado às gritantes diferenças demográficas existentes no País, e, do outro, ao valor das maiores entidades federativas.

Infelizmente, a sua magnífica proposta, aprovada sem discordância dos membros da Comissão, da qual participavam personalidades de todas as regiões do Brasil, não logrou guarida na Assembléia Nacional Constituinte, a qual, fiel ao espírito demagógico que a presidiu, confirmou os erros antigos, limitando-se a elevar para setenta o número máximo de deputados, que são os que hoje possui em Brasília...

Há certos erros no campo político que, uma vez praticados, tornam-se insanáveis, tal a soma de interesses personalistas e de motivos irracionais neles envolvidos, mesmo porque, V. Excelência há de convir comigo, a carga irracional é demasiado grande nas decisões de caráter político, sobretudo na esfera do Poder Legislativo.

Não é o caso de nos desesperarmos, porque, como escrevi alhures, há equivalência ética entre ganhar ou perder as batalhas do ideal, máxime quando este não resulta de aspirações cerebrinas, mas sim de elementares imperativos de justiça.

O certo é que, com essa atitude V. Excelência, mineiro que é, conquistou para sempre a cidadania paulista, por ter querido resolver uma das questões básicas do ordenamento federativo, colocando-se sobranceiro aos contrastes e divergências regionais, para ver a nação como um todo.

Esta Academia, que conta entre seus antigos membros políticos e estadistas eminentes, como Washington Luis (pouco importa que não tenha tomado posse), Altino Arantes, Carlos de Campos e Lucas Nogueira Garcez, tem, pois razões de sobra para dizer-lhe: "seja benvindo"!






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