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DISCURSO DE POSSE
Acadêmico: Benedito Lima de Toledo
O novo acadêmico fala de seu antecessor, da relação da arquitetura e a literatura e comenta sobre o privilégio da convivência com os confrades.

Senhor Presidente
Senhores Acadêmicos
Minhas Senhoras e Meus Senhores

Depois de ter sido honrado com a elevada distinção de ser acolhido nesta Academia e passar a gozar o privilégio do convívio com tão ilustres personalidades, vi-me na contingência de redigir algumas linhas, tarefa árdua quando se tem em conta a qualificação dos componentes desta casa.

Afinal, sou um arquiteto, e segundo a etimologia, um archi-tecton, ou seja, aquele pedreiro que ascendeu à direção de obras, mas sempre um pedreiro.

Talvez devesse, à semelhança da expressão atribuída a Giotto “não saia o sapateiro de seu sapato”, contentar-me com outra “não saia o pedreiro de sua pedra”.

Ainda assim, gostaria de tecer algumas considerações, começando por referir-me a este recanto da Cidade de São Paulo, coerente com a proposição acima referida.

Considero uma felicidade a Academia Paulista de Letras encontrar-se em sítio tão repleto de referências históricas. Se Alexandre Herculano afirmou que “Há edifícios que contam o passado ao presente” eu diria o mesmo de alguns logradouros. Não me alinho entre aqueles que reservam apenas para alguns núcleos urbanos a designação de “cidades históricas”. Porventura, pergunto, haveria alguma cidade fora da história? Prefiro a posição do autor de O Monge de Cister: “como de pais a filhos as diversas gerações se continuam e entretecem sem divisão, semelhantes à túnica inconsútil do Cristo, assim a cidade antiga se transmuda imperceptivelmente na nova cidade”.

Peço licença para lembrar preliminarmente que estamos num largo, o que nesta cidade é um fato repleto de significado. Ao observar os primeiros documentos cartográficos, constataremos que São Paulo não possuía praças. Possuía largos, entendidos como espaços abertos, não mais que alargamento de ruas em face de edifícios religiosos para permitir sua melhor visibilidade. Assim era o Largo da Sé, o Largo de São Francisco, o Largo de São Bento, da Misericórdia, do Rosário, de Santa Ifigênia e outros mais. No levantamento que mandou fazer, o Morgado de Mateus concluiu que a artéria mais importante da cidade era a Rua São Bento, que unia dois largos, o Largo de São Bento ao Largo de São Francisco. Assim um visitante poderia, nesse trajeto, encontrar os monges no Mosteiro de São Bento, os frades no Convento de São Francisco, os clérigos junto à Sé e os Padres da Companhia no respectivo Colégio. O Colégio dos Jesuitas era um caso especial: abria-se para um terreiro, como nos demais estabelecimentos da Companhia pelo país.

Não havendo praças, os largos eram os logradouros públicos por excelência. A acrópole paulistana não contava com jardins. As casas eram construídas no alinhamento das ruas e os largos eram os centros de convívio. Cercada pelo vale dos rios e, particularmente pela extensa Várzea do Carmo, os paulistanos não deveriam sentir falta de espaços livres. Talvez ocorresse o contrário, todo espaço livre no Triângulo deveria ser utilizado, sendo oportuno lembrar que São Paulo foi, em sua origem, uma cidade contida entre muralhas.

Havia outra característica registrada pelos viajantes: as chácaras que rodeavam a cidade eram merecedoras de grandes elogios. Spix e Martius afirmam ter encontrado nesses arredores “toda a variedade possível de Campinas verdejantes e frondosas matas, de colinas, alternantes com bonitos vales”. Não era de se admirar que “a bela natureza e o clima feliz houvessem fomentado o gosto dos paulistas pelo cultivo de jardins e hortas, encontrando-se alguns destes, de efeito bastante agradável perto da cidade”.

Ayres do Casal, na sua Corografia anota que “nos seus alegres subúrbios, havia grande número de chácaras, entre cujas árvores frutíferas não são desprezadas nem raras as jabuticabeiras, cujo fruto é formoso e excelente”. Muito aprazível, portanto, deveria ser a vida nessas chácaras.

A chácara do Arouche era exemplo eloqüente. Situada fora do Triângulo, no que viria a ser a região conhecida como “Cidade Nova”, ali morava o Tenente General José Arouche do Toledo Rendon personalidade devotada a esta cidade. Formado em Coimbra, uma de suas paixões era o exercício de armas. Para tanto, empreendeu a abertura de uma praça, como vai registrado em oficio que dirigiu à Câmara a 7 de Agosto de 1811.

Por esse documento, ficamos sabendo da inexistência de praça na cidade e sequer em seus subúrbios, cabendo ao mesmo Arouche, responsável pelo início da urbanização da Cidade Nova, a iniciativa pioneira da abertura de uma praça que depois de conhecer diversas denominações Praça da Legião, Praça dos Milicianos, Largo dos Curros, Largo da Palha chegou à atual: Praça da República. Já não se trata, então, do antigo espaço aberto frente a um edifício religioso.

Próximo a esse local ficava a própria Chácara do General Arouche, onde seu proprietário iniciou em São Paulo a cultura do chá, com “um par de sementes que me trouxe um amigo, colhendo-as furtivamente no jardim da Alagoa” ou seja, do Jardim Botânico da Lagoa Rodrigo de Freitas, dirigido pelo insigne botânico Frei Leandro do Sacramento. A cultura prosperou e, no dizer de Frei Leandro, “os arbustos de São Paulo se acham maiores e mais vigorosos do que no Jardim Botânico da Lagoa, sendo de menor idade”. A produção de chá nessa propriedade atingiu o surpreendente índice de 44 mil pés.

Outros proprietários lançaram-se ao cultivo do chá. Segundo Antônio Egídio Martins “os estabelecimentos mais notáveis em 1835 eram os do mesmo General Arouche, o do Senador Padre Diogo Antonio Feijó, que foi Regente do Império de 1835 a 1837; o do Coronel Anastacio de Freitas Trancoso e o do Sargento-mor José Manuel da Luz, cultivando-se também nas chácaras particulares, então existentes nesta cidade”.

Em 1791, foi inaugurado o edifício da nova Cadeia e do Senado da Câmara de São Paulo. Nessa ocasião, numa sessão em homenagem ao Governador Lorena, Arouche proferiu um poema em honra do homenageado, onde conclui: “[...] Que de aldeia a fizeste uma cidade”. Constatação que constitui valioso registro de história urbana.

Lorena, Arouche, Feijó, Anastácio, são nomes que se ligam à história de São Paulo por seu amor a esta cidade e por iniciativas que a engrandeceram.

O Chá, portanto, foi uma cultura intimamente ligada ao surgimento da Cidade Nova e não por outra razão, quando se promoveu a ligação do Triângulo à Cidade Nova, à obra foi merecidamente reservado o nome “Viaduto do Chá”.

Alguns anos após a morte de seu proprietário, a chácara do Arouche foi arruada e nela aberto o logradouro que conserva seu nome, tomando a atual designação de Largo do Arouche. Nesse largo, em 17 de junho de 1877, foi inaugurada a primeira Escola Pública, como registrou José Jacinto Ribeiro em sua Cronologia Paulista:

“No novo edifício mandado construir pelo Governo Provincial para a 1a escola publica, no largo do Arouche, segundo plano dos Estados Unidos, de construção simples e elegante, tem lugar a festa da inauguração da mesma escola [...]”.

Como se constata, é mais um evento a se somar à história desse logradouro.

Se me permiti estas ligeiras considerações sobre a evolução urbana de São Paulo, senhores Acadêmicos, o intuito foi lembrar o campo fértil e rico em história em que se acha a atual sede da Academia Paulista de Letras, que tanto enriquece o nosso patrimônio ambiental urbano.

Nesta Academia senhores, sou um Professor de História da Arquitetura sucedendo a um Professor de Literatura Inglesa, o eminente Acadêmico Paulo Vizioli.

A leitura de seu discurso de posse trouxe-me simultaneamente preocupação e tranqüilidade. O primeiro sentimento veio-me pela convicção que longe estarei de poder redigir peça com tanta elegância e profundidade. A tranqüilidade vem da constatação de que a existência de tal documento na Academia, em certa medida desobriga-me a tal esforço. De qualquer forma, valho-me do conceito emitido por José Saramago: “Quem faz o que lhe é possível, a mais não está obrigado”.

Traçando o perfil do patrono desta cadeira, Gabriel José Rodrigues dos Santos e de seu Fundador, o Embaixador Pedro de Toledo, Paulo Vizioli destaca sua operosidade e seu lugar na história de São Paulo.

Dos titulares da cadeira, o primeiro referido é Monteiro Lobato, homem de fortes convicções e incansável batalhador por sua difusão.

Quando me lembro das primeiras leituras de infância, vem-me à mente a curiosidade despertada por grandes obras da mitologia grega tratados no livro Os Doze Trabalhos de Hércules, leitura que tornava acessível esse campo à curiosidade infantil. Depois, obras que nos colocavam no mundo de nossas lendas e no ambiente rural, como O Saci.

Desse primeiro contacto, a imaginação infantil era convocada para obras úteis à formação escolar como A Aritmética da Emília, atingindo o que Paulo Vizioli classificou como uma “mescla de ficção e pedagogia”. Faço este destaque por ter sido fervoroso leitor de sua obra na infância.

Da obra de José Geraldo Vieira, que situa seus romances nesse cenário da vida humana, a cidade, cuja cultura construída por sucessivas gerações, enriquece a todos que dela sabem usufruir, gostaria de destacar A Ladeira da Memória, romance inspirado nesse logrado que, na verdade, é importantíssimo referencial urbano.

Não posso deixar de me referir a esse recanto que abriga o monumento mais antigo da cidade, obra de Daniel Pedro Muller, datado de 1814. O Largo da Memória conta, ainda, com azulejos onde, pela primeira vez, foi representado o brasão da cidade, concebido pelo poeta Guilherme de Almeida e desenhado por J. Wasth Rodrigues, autor, igualmente, do brasão desta Academia.

José Geraldo Vieira foi sucedido por Mário Donato, cuja originalidade na literatura brasileira foi assinalada por Paulo Vizioli , que a propósito de Presença de Anita escreveu: “Eis ai um livro, portanto, em que Mário Donato fez algo pelo romance brasileiro que ninguém havia feito” e, mais adiante, “Depois de publicar Galateia e o Fantasma, em 1951, ressurgiu ele, em 1954, com Madrugada sem Deus, outro romance inusitado, que também reclamava nossa atenção”.

Paulo Vizioli a quem tenho a honra de suceder nesta Academia foi professor da cadeira de Língua e Literatura Inglesa e Literatura Norte-Americana da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.

Pertencia àquele reduto de intelectuais formado na Rua Maria Antônia, cujo convívio era altamente enriquecedor. Não longe dali, na Rua Maranhão, situa-se a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da mesma Universidade, atual sede dos cursos de pós-graduação, onde estudei e, posteriormente, iniciei e venho desenvolvendo minhas atividades didáticas.

Devo declarar o verdadeiro fascínio pelo brilho intelectual daqueles mestres, o reconhecimento de sua capacidade em produzir e difundir o conhecimento.

Tivemos na Faculdade de Arquitetura o privilégio de contar, na diretoria, com alguns desses mestres da Faculdade de Filosofia e devo registrar a imensa afinidade que souberam revelar com nossa atividade.

Nesta Academia venho encontrar personalidades que me são muito caras. Não poderia deixar de evocar a figura do Professor Antônio Soares Amora, cujo cavalheirismo é de todos conhecido. Seu apoio foi fundamental na obtenção de minha primeira bolsa de estudos concedida pela Fundação Calouste Gulbenkian de Portugal.

Tenho o privilégio da amizade com o Dr. José Mindlin, cujo trabalho pela cultura é um exemplo de quanto pode um homem contribuir desinteressadamente para o desenvolvimento da vida cultural do país, transformando seu amor pessoal pelos livros e pela arte de um modo geral, em benefício da coletividade. Nunca é demais exaltar a obra benemérita do Dr. José Mindlin ao doar um verdadeiro tesouro intelectual à coletividade paulista. Quero agradecer ao eminente amigo a honra e o prazer que me dá recebendo-me hoje nesta Academia.

E, quero saudar esse homem público, Israel Dias Novais, cujos serviços prestados à Nação podem ser avaliados, entre outros fatos, por ter sido consagrado seis vezes em eleições livres e democráticas a cargos públicos.

Mas, devo concluir. Cometerei a injustiça de não invocar o nome de outros acadêmicos que tanto admiro e prezo. Sou filho de um Professor da Universidade de São Paulo. Meu pai teve seis filhos, dos quais cinco formaram-se pela mesma Universidade. Foi o ensino público, o melhor do país, que nos permitiu o acesso ao conhecimento. Sou, dessa forma, profundamente grato a essa instituição onde conheci uma Bibliotecária na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo que hoje guardo em minha biblioteca. Refiro-me à minha esposa Suzana.

Devo registrar o privilégio que me é facultado de evocar a figura do Professor Paulo Vizioli, tradutor, crítico, poeta, esse eminente homem de Letras mereceu distinções como o Prêmio Nacional de Tradução do Instituto Nacional do Livro (1989), contemplado por sua tradução dos “Canterbury Tales”.

O reconhecimento de seus inegáveis méritos não é tarefa que se reserva a um leitor não especialista na matéria. Valho-me para isso do parecer de outro mestre para tanto muito qualificado: o Acadêmico e Professor Erwin Theodor Rosenthal. Ao saudar o acadêmico que passava a integrar o quadro desta Academia, em seu discurso de acolhimento afirmou: “Vós, Acadêmico Paulo Vizioli sois o “gentiluomo”, dominais os textos antes de os verter, e recriando-os estabeleceis paradigmas de incalculável penetração”.

Para Péricles Eugênio da Silva Ramos, Paulo Vizioli “Ao seu conhecimento de poesia da Inglaterra une fina percepção dos valores do texto e ardente desejo de os transpor para a nossa língua”.

Em face da dedicação de Paulo Vizioli a seu trabalho, veio-me à mente o princípio de que a principal fonte da arte é o prazer do homem em seu trabalho diário o que torna a vida mais amena.

Dessa afirmação não sou autor. Fui buscá-la na literatura inglesa, em William Morris, no seu texto “The worker’s share of art”, do qual peço licença para lembrar pequeno trecho como homenagem ao Professor de Literatura Inglesa a quem tenho a honra de suceder:

- Repito: a principal fonte da arte é o prazer que o homem tem em seu trabalho diário; nada mais pode tornar belo o cenário da vida, e sempre que esse cenário for bonito, será um sinal de que o trabalho do homem lhe trás prazer, não obstante sofrimentos -.

Este ano, tive a felicidade de assistir à missa de Páscoa na Igreja de S. Pedro dos Clérigos, na Cidade do Porto, e já o idoso celebrante nos lembrou: “Não basta viver, é preciso viver com alegria”. Viver com a alegria que se tira do próprio trabalho.

A obra dos homens de letras é o melhor monumento à sua memória. A idéia veio-me de inscrição que um anônimo canteiro deixou, há séculos, no portal de uma capela de aldeia no interior de Portugal: “Memória sou de quem a mim me fabricou”.

Termino, senhoras e senhores, reiterando meus agradecimentos por minha eleição e o privilégio que me é concedido por este convívio.

Muito obrigado.





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