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DISCURSO DE POSSE (18.09.1968)
Acadêmico: Paulo Nogueira Filho
"Eis-me agora aqui, para convosco servir, neste ateneu da comunidade brasileira, no seio de nosso amado e epopeico povo paulista."

Foi na minha infância, a caminho da escola, em passagem obrigatória
por forte declive da velha Rua de São João, que bem cedo adquiri a consciência dos pólos antinômicos que nos atraem incessantemente no labirinto da vida. É que, naquele trecho, seguindo na direção da Rua Líbero Badaró, frente a frente se situavam: à direita, o antigo Salão Steinway, mais tarde sede do Conservatório Dramático e Musical, ninho de artistas, local em que nasceu a Academia Paulista de Letras; à esquerda, a Pensão Milano, um dos centros infernais da Paulicéia de 1909, onde em promiscuidade belzebuas e belzebus viviam às escâncaras.
A longa jornada de minha vida não me cabe contar nesta oração. Posso, no entanto, asseverar que, por entre as tentações opostas que essa imagem gravou no disco virgem da meninice, meu anjo da guarda, que é da tribo dos Serafins, conduziu-me ao marco em que numa tarde, como outra tarde qualquer do verão paulistano, Guilherme, meu irmão, soldado raso de 32, adverte-me com acento veemente e emotivo que resolvera apresentar minha candidatura à cadeira deixada vaga neste Silogeu pelo saudoso Embaixador Macedo Soares.
Ao arrimo do Príncipe dos Poetas e de amigos magnânimos tornei-me academisável. E eis-me agora aqui, entre as galas deste dia soberbo, acatando a convocação que me fizestes, para convosco, nobres acadêmicos, usufruir a singular felicidade de vosso convívio. Pelas aléias ensolaradas que me abris para o trânsito de minha vida prosseguirei convosco, com humildade cristã, nas idealizações que traduzis com tanta beleza e sensibilidade humana.

* * *
Neste instante o que me deslumbra é ser recebido num dos órgãos permanentes mais autênticos da manifestação literária da alma de nossa gente. No mundo contemporâneo o exercício dessa função social exige dos que a ela se dedicam, urna compenetração profunda de realidades dominantes em segmentos compactos da vida social do povo. Não que seja esse um objetivo absorvente e exclusivo, mas, por sem dúvida, de um relevo que cresce dia a dia. Não vejo como dele se possa alhear a práxis desta nossa querida Academia Paulista de Letras.

RADIOGRAFIA DO MODERNISMO

Do que pode realizar nesse campo um grupo de escritores, oferece-nos brilhante exemplo o movimento modernista, quando, em derredor do primeiro centenário da Independência, firmou, com a Semana de Arte Moderna, os rumos que permitiram a uma elite intelectual penetrar em camadas mais extensas da sociedade, exercendo uma influência que, com o correr do tempo, se ampliou incessantemente. Na radiografia do modernismo paulista, aí está, a sobressair translúcida, a descoberta que os "novos" fizeram de uma sociedade até então marginal, com seus modos de ser, de agir, de pensar e de se exprimir, transbordante de atividades criadoras. A par do matuto, surge o filho
do imigrante. Lado a lado com Juca Mulato, aparecem os personagens
do Brás, Bexiga e Barra Funda... O movimento traz à tona um mundo até então desconhecido nas esferas conservantistas. Ultrapassada a fase de vitoriosa rebelião contra as formas herméticas em distonia com a realidade social em ebulição, os modernistas tocam a clarinada da verdadeira revolução brasileira e ferem de morte a parcela da comunidade paulista dominada ainda por pseudo-aristocracia rural que gozava voluptuosamente, seus derradeiros momentos inspirada nos fastos de belle époque.
Ao dissolver-se por volta de 1928, o grupo havia completado
magistralmente o processo inovador que se propusera realizar nesta nossa Piratininga, que não é apenas um gigante de chaminés e monstros de cimento e aço, mas um rincão onde vive um povo de consciência alertada, receptivo ao verdadeiro progresso alicerçado na liberdade e na paz social.

SUBLEVAÇÃO GENERALIZADA

Em muitos aspectos os dias atuais assemelham-se aos de 1922, se bem que mais conturbados. Não há negar que a humanidade está sendo sacudida por uma sublevação generalizada. Recrudescem, em todas as latitudes do globo, processos de violência que assustam, fustigando os vagalhões da insurreição todas as terras, sem excluir a nossa.
Contudo, mesmo diante disso, não há por que entrar em pânico. Pesquise-se a fundo os fenômenos e ver-se-á que ele tem por causa imediata a portentosa revolução tecnológica, que altera por completo as condições de vida de todo o gênero humano, assumindo proporções inéditas. Basta considerar que comunicações se tornaram instantâneas e a informação, dada ao vivo, passou ao alcance das maiores multidões.
Não creio que haja, todavia, neste culto auditório, quem pense na utilidade ou possibilidade de se deter esse maravilhoso avanço, que vai oferecendo, a populações cada vez mais densas, melhores meios de prolongar e suavizar a existência, garantindo maior conforto e segurança, numa estupenda afirmação da soberania do Homem no Universo conhecido.

* * *

Mas, com igual evidência, essa revolução acarreta outra: a das formas de adaptação das comunidades à nova ordem imposta pelo progresso material. A parte do arcabouço das sociedades nacionais já desgastada e obsoleta, não tem condições para resistir ao impacto dos fatos ocorrentes e das aspirações de imensos aglomerados em plena efervescência. Surge o imperativo: ao êxito dos inventores tecnológicos terá de se emparelhar o dos formuladores das novas normas de existência coletiva.

* * *

À revolução social, segue-se também, com o rigor das fatalidades inexoráveis, a revolução literária, que, por sua vez, acarretará peremptórias interferências de ordem social. Não negam os homens lúcidos e serenos, que estão em campo, na primeira linha, agora, os "novos" de 1968, aos quais não deixam de se unir, tal como em 1922, veteranos aureolados procurando, uns e outros, não somente espelhar estilos de vida que se renovam, traduzindo estados de espírito vigorosos, mas também colaborando, direta ou indiretamente, nas formulações necessárias ao atendimento dos reclamos ostensivos ou latentes das massas. Não vejo como, diante desse quadro de um realismo agressivo, possam intelectuais omitir-se, nem como, se aferrarem a concepções superadas, consigam livrar-se ou de esmagamento pelo rolo compressor de turbas exaltadas ou do pisotear de tiranos e tiranetes que estão bem à vista nos quatro cantos da Terra.

INSTITUIÇÃO MODELAR

O papel de uma academia de letras, em todo processo social, como esse a que ora assistimos, parece-me de lídima clareza. A ela não cabe, dada sua índole institucional, empunhar bandeiras em terrenos revoltos. Seu objetivo é antes fixar pelo caldeamento constante das tendências que nela se manifestam, as características dos sentimentos e do pensamento expresso na literatura de cada fase de renovação a que assiste e de que participa.
A Academia Paulista é nisso um modelo que nos orgulha. Em caso algum, exerceu ou exerce a mais leve pressão moral sobre qualquer de seus membros. Atenta aos remuos sociais no campo das letras, tem franqueadas suas portas sem discriminações facciosas. Recebe os revolucionários e os inovadores, quando julgados representantes autênticos de correntes ponderáveis.
O resultado aí está, registrado no arquivo das obras dos que passaram e dos que passam pelo seu umbral acolhedor.

INSENSATEZ

Em meio do torvelinho que presenciamos, certos energúmenos pretendem a destruição do passado, como se este fosse equivalente a pesadas algemas medievais.
Insensatos!
Na fase aguda de luta contra a opressão, derive do domínio de homens sobre homens ou se origine na monotonia e no automatismo de intoleráveis rotinas é possível admitir que não sejam de maior valia os arquivos acadêmicos. Mas, na hora da estruturação de uma nova ordem, a lógica dos fatos é outra. Será nos trabalhos que melhor reflitam os estados sociais do passado que se encontrará a argamassa da vinculação coletiva, sem a qual os arquitetos sociais estarão diante de estultice comparável à pretensão de erigir monumentos feitos de tijolos soltos ...

JOSÉ CARLOS DE MACEDO SOARES

Do que vale esse passado, para a solidez do liame social, na seqüência da evolução de um povo, oferece-nos significativo exemplo a dinâmica existência de meus antecessores na cadeira que sou chamado a ocupar. São varões-símbolos, nas fases históricas em que se expandiram.
José Carlos de Macedo Soares, no desdobramento do conjunto dos episódios de sua vida, é, na primeira metade da centúria, em nossa terra, personalidade de excepcional grandeza. Considerem-se apenas algumas das linhas mestras de seu imponente retrato de corpo inteiro. Foi estudante líder, educador, empresário, economista, banqueiro, defensor da população paulistana, revolucionário, secretário de Estado, político, embaixador, ministro da República, constituinte, literato, historiador, acadêmico, presidente de altas instituições culturais do País, administrador de raro mérito, interventor em São Paulo e filantropo imbuído de um profundo espírito de solidariedade humana. Em cada uma dessas atividades multiformes, nas agremiações a que pertenceu, ocupou no vértice da pirâmide social, o mais alto posto, com exceção apenas da Presidência da República.

EM DEFESA DA POPULAÇÃO PAULISTANA

José Carlos de Macedo Soares aponta no primeiro plano da vida
pública, ao assumir em 1923 a presidência da Associação Comercial de São Paulo. Começava a dar excepcional relevo ao cargo que exercia, quando estruge o segundo Cinco de Julho. O Governo, desnorteado, afasta-se da Capital. É socorrido pelas forças federais e os canhões se assestam contra a pacatíssima Paulicéia. São dias de sofrimentos indizíveis para a população civil. Diante disso, meia dúzia de cidadãos decididos a suprir a carência das autoridades ausentes, incorporados, tais como os "homens bons" de outrora, entendem-se com o chefe que exerce o poder de fato, Isidoro Dias Lopes, o militar que logo se transformaria em ídolo popular: o querido e lendário Inácio, como o povo oprimido passou a chamá-lo anos a fio... Essa diligência foi liderada por José Carlos, com lisura, lealdade e altanaria, traços constantes em toda sua longa existência. Em que pesem os termos do processo inepto
contra ele movido e as belas páginas de defesa contidas em Justiça, esse episódio nos revela Macedo Soares, não como subversivo - o que seria a própria negação de sua personalidade - mas como autêntico revolucionário, no terreno da luta pelos ideais democráticos.

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Formada a Aliança Liberal, surgida como instrumento de uma revolução já latente, vemo-lo, hospedando Getúlio Vargas em sua residência, em São Paulo, e com ele colaborando, nos primeiros passos para um pleito, do qual deveria emergir um efetivo regime representativo no Brasil. Vitoriosa a Revolução de Outubro, integra o chamado secretariado dos 40 dias, tornando-se dos mais ardorosos defensores da autonomia do Estado, violada desde o instante em que, traídos os princípios básicos da Aliança, a Ditadura, ferindo o pundonor dos paulistas, entrega o governo do Estado ao Tenente João Alberto Lins de Barros.



EMBAIXADOR DA DIGNIDADE PAULISTA

Em novo lance dramático, define-se outra das virtudes cívicas de Macedo Soares. Ainda na fase em que de todo não se desmascarara a política caudilhesca, em 1931, ao ser nomeado embaixador do Brasil na Bélgica, a sociedade paulista presta-lhe significativa homenagem. Em meio de uma atmosfera trepidante nos salões do Trianon, arremata seu agradecimento nestes termos incisivos: "Embaixador do Brasil serei, enquanto São Paulo tiver, no coração brasileiro, o lugar que lhe cabe por sua brasilidade. (...) Quando, porém, nos enjeitarem, como a um filho espúrio, saberei ser o embaixador da dignidade paulista, ante a consciência nacional. Saberei ser o embaixador dos paulistas ofendidos, com eles solidário na reivindicação de seus direitos, firme nas reações de sua dignidade."
Rezam unânimes as crônicas que estas últimas palavras foram cobertas por aclamações que atingiram o delírio, em meio de comoção vivíssima que se apoderara de toda a assistência.
Não era para menos. São Paulo estava sendo vilipendiado por uma ocupação forasteira, que ele não podia tolerar, como não tolerou, nem tolerará jamais!

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Deflagrada a Guerra Cívica, segundo documento lido desta tribuna pela autoridade do emérito historiador, Aureliano Leite, a atitude de Macedo Soares em 1932 está definida num despacho ao Ditador, passado quando se tornara irremediável o colapso das armas paulistas. Diz em síntese: "Por telegrama que enviei ao Ministro Melo Franco, deve estar ciente de minha atitude, coerente com toda a minha vida, em defesa da terra onde nasci, sejam quais forem as conseqüências. (...) A luta fratricida, não podendo ter solução militar, só poderá ter solução política." Da resposta do Ditador é de se destacar o apelo final: "Para consecução paz será muito oportuno seu regresso a fim de cooperar na obra pela qual ansiamos todos bons brasileiros." O Embaixador atende, mas chega tarde. Ensarilharam-se as armas nas tristes condições conhecidas ...



DIPLOMATA E ECONOMISTA

O embaixador, desde logo evidencia sua irresistível vocação de diplomata. Pesquisador e estudioso dos meandros de nossas relações exteriores, homem de têmpera robusta, mas de tendência conciliadora, estava fadado a ser, como de fato foi, um dos chefes mais proficientes do Itamarati. Neste posto chega à culminância quando, na Guerra do Chaco, ousadamente promove a 18ª tentativa de pacificação, que por fim alcança retumbante triunfo. Quando, obtida a paz entre o Paraguai e a Bolívia, regressa ao Brasil, a imprensa platina aponta-o como o "Chanceler da Paz". Mais adiante, por consenso unânime dos países do Continente, é chamado "Chanceler das Américas", título a que honra, firmando com atos e ao longo de peregrinações por Estados vizinhos ao Brasil, o conceito de um pan-americanismo visceralmente democrático.

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Outro dos traços mais característicos de José Carlos de Macedo
Soares é o que focaliza João Mendes Neto em erudito trabalho sobre O Economista, o Empresário e o Industrial, do qual destaco esta afirmação: "Nos seus planos de trabalho procura a orientação especializada e a inteligência prática. Não se conforma com o empirismo econômico." Este juízo proferido por quem de tão perto acompanhou a ação do líder proeminente na órbita do empresariado paulista, desvenda-nos o verdadeiro segredo do êxito de tantas de suas realizações, nos setores em que atingiu as mais invejáveis posições. Aliás, algumas de suas obras nesse terreno, como José Bonifácio Economista, ou o conjunto de seus estudos e interpretações no campo da moeda e do crédito, continuam, em muitos ângulos, perfeitamente válidas.

GOVERNADOR

No atinente à ação de Macedo Soares na Interventoria de São Paulo, que ocupa de 1945 a 1947, deduzo seus traços mais gerais de coloridos relatos de dois de seus ilustres Secretários de Estado. Edgard Batista Pereira e Francisco Malta Cardozo. Diante da singela exibição dos fatos sem vacilação pode-se concluir que nesse posto é que José Carlos revela na sua verdadeira dimensão a qualidade de governante, administrador e político. Nele condensa todas as suas energias e aptidões, enfrentando com sabedoria e fino tato social os problemas de toda ordem que pululavam na área do poder público naqueles anos alvorotados. A paz e tranquilidade que assegurou nesse período aos paulistas, sem qualquer recurso à violência, constitui a comprovação irrecusável do acerto de suas decisões. Quanto à parte propriamente construtiva de suas realizações na chefia do Poder Executivo não há como negar que não tendo qualquer espécie de afinidade ou aproximação, remota que fosse, com os arautos da "esquerda radical", não deixou de ser progressista no rigor do termo, Ainda aqui evidencia-se a harmoniosa coerência de seus predicados pessoais: inteligência objetiva, pendor para o planejamento e a racionalização das ações a serviço do atendimento social.
A atestá-lo brilhantemente basta o registro no setor rural da criação das escolas práticas de agricultura e, em âmbito dos mais amplos o incentivo que deu ao verdadeiro cooperativismo nos moldes dos pioneiros de Rochdale. Se tivesse sido apenas um homem público que atingira a chefia de um Estado caber-lhe-ia como epitáfio estas palavras de José Maria Whitaker: "Governou equânime, acima dos grupos e partidos."

HISTORIADOR, LITERATO E FILANTROPO

A parte mais importante dos trabalhos escritos por meu insigne antecessor é a que dedicou à História. No seu primoroso discurso de recepção na Academia Brasileira de Letras, firmou o pensamento que o norteia, neste capítulo absorvente de suas cogitações: "a meditação e o estudo da história da civilização impuseram-me o terror dos julgamentos globais e definitivos". Em dois de seus livros, obras de realce na nossa literatura histórica, Falsos Troféus de Ituzaingó e Fronteiras do Brasil Colonial, outra de suas peculiaridades se define de forma incomum. Sob o lastro de sólida documentação, imprime não raro aos textos medido acento polêmico, para melhor patentear e ilustrar suas interpretações.

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Do ângulo estritamente literário, contrariando opiniões nem sempre
lisas, em todas as produções do escritor encontramos a marca inconfundível de seu feitio personalíssimo. Do douto e exaustivo estudo de Ataliba Nogueira sobre Macedo Soares e as Letras extraio estas concisas opiniões: "Não se preocupava em castigar o estilo, menos ainda em rebuscar vocábulos e construção de frase. Apreciava a naturalidade. Evitava os adjetivos. Preocupava-o a clareza na exposição, o que exige, sem dúvida, o emprego do termo adequado e a correção gramatical." Dentro do quadro dessas anotações do erudito Mestre cabe ainda a observação de que Macedo Soares redigia de maneira simples, fluente, enxuta e vivaz, não faltando em seus escritos páginas brilhantes. Somente quem não tenha lido Santo Antônio de Lisboa, Militar no Brasil, ou Santo Antônio, autor da "Imitação de Cristo", pode ignorá-lo. O mesmo direi das biografias que escreveu, de que são exemplos a de Oswaldo Cruz e a dos Machado D'Oliveira.
Infatigável no trabalho intelectual, ascendeu por duas vezes à presidência da Academia Brasileira de Letras, numa das quais decretou o sistema ortográfico vigente. No Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro foi presidente perpétuo.
Ao imenso acervo das realizações de Macedo Soares, das quais apresento apenas modesto escorço, há que acrescentar como coroamento supremo, o de seu filantropismo. Não é possível fazer um levantamento, aproximado que seja, dos bens e benefícios que, com Dona Mathilde, distribuiu a mancheias. Nem se saberá jamais o número de deserdados que socorreu individualmente, como também o dos seminaristas que D. Mathilde, padrão insuperável de esposa cristã, formou à sua expensa exclusiva. O que se sabe, com segurança, é que, possuidor de imensa fortuna, chega ao fim na mais absoluta pobreza.

SUAVE CREPÚSCULO

Ao termo da década 50, abre-se a fase final da vida do inolvidável acadêmico que todos pranteamos. Em sua residência, São Paulo rende-lhe preito, condizente com aquela hora de seu suave crepúsculo. Seu egrégio e indefectível amigo, Dr. José Maria Whitaker, entrega-lhe pergaminho, em que inseriu a mais perfeita, concisa e justa exaltação do homenageado, concluindo: "Enfrentou os poderosos, protegeu os humildes, renunciou a posições brilhantes, sacrificando, sem hesitar, bens e interesses, às convicções de seu espírito liberal e caritativo. José Carlos de Macedo Soares, grande homem de Estado, tem grande alma de cristão. E é nesta dupla qualidade que lhe manifestamos, nesta modesta homenagem, nossa gratidão de paulistas, nossa admiração de amigos afetuosos e devotados."
Na saudação que, em seguimento profere, Altino Arantes fez-lhe este supremo elogio: "Neste século convulso, prenhe de apreensões e de perigos repitamo-lo com o Poeta - ele há de brilhar como farol de luz e de bondade em meio à escuridão e à tormenta... É o que antecipa hoje e para sempre atestará à Nação Brasileira este pergaminho - eterno, imperecível farol de nobreza e de benemerência cívicas, que o povo de Piratininga, no legítimo exercício de sua virtual soberania, confere e outorga a um dos mais ilustres e virtuosos dos paulistas."

BRIGADEIRO MACHADO D'OLIVEIRA

Assim foi o Embaixador José Carlos de Macedo Soares, hoje no
panteão dos imortais. Junta-se a seus antecessores nesta Casa, postos sob a égide de um paulista excepcional, o Brigadeiro José Joaquim Machado d'Oliveira, nascido no pequeno São Paulo do último quartel do século XVIII, cidade que mal contava 25.000 habitantes! É o Patrono da cadeira nº 1, outra das vidas ilustres em que se baseia a vinculação social das gerações que se sucedem neste nosso bendito recanto da terra brasileira.
Sigamos alguns passos marcantes da rutilante trajetória do Patrono em Piratininga e pelo Brasil adentro, Muito moço ainda não se conformando com tão acanhado ambiente, como aquele que o paulistano lhe oferecia, procura o âmbito nacional, no período de transição da Colônia para o Primeiro Reinado. Participa da Campanha Cisplatina, começando a alcançar promoções e honrarias, que não cessariam. Ao fim da vida: "A amplidão de seu peito mal chegava para as condecorações que atestavam seu merecimento" . Soldado da Independência, em 1822 é porta-voz da delegação que apresentou ao Príncipe Regente pedido para que permanecesse no Brasil. No Império, desempenha altas funções administrativas, entre as quais a de membro do Governo Provisório do Rio Grande do Sul e as de Presidente e Comandante de Armas das províncias de Sergipe, Pará, Alagoas, Santa Catarina e Espírito Santo. No Exterior, exerce o cargo de cônsul-geral do Brasil no Peru e Bolívia. Como político, vemo-la ardoroso e invergável militante do Partido Liberal exercendo por duas vezes mandato legislativo na Assembléia-Geral.
O que há de verdadeiramente incomum nesse notável cidadão dos tempos imperiais é o ter conseguido, em meio de uma existência emocional e intensa, realizar a volumosa obra científica e literária que nos legou e em que se salienta o famoso Quadro Histórico da Província de São Paulo. Os opúsculos em que aborda palpitantes problemas ascendem a mais de três dezenas entre os quais alguns vertidos para o francês e o inglês.



OLÍMPICA ESCALADA DE GLÓRIA

Aproximando-se-lhe o fim, já aos 77 anos, seu filho Brasílio Augusto Machado d'Oliveira, estudante, contando pouco menos de 19 anos, católico fervoroso, tenta a conversão do pai ateu. Antônio de Alcântara Machado - seu bisneto, talento entre os mais notáveis da geração, conta a cena comovente: "A morte andava por ali a ameaçar a cada instante interromper a conversão. O filho foi falando, falando depressa, contendo o choro, precipitando as palavras até que o pai cedeu. Menos ao pedido do filho do que à verdade que tornava comovente e irresistível a voz dele."
O relato inspira a legenda que o verso de Lucrécio traduz: Et Quasi Cursores Vitae Lampada Tradunt.
O Brigadeiro rende sua alma a Deus. Brasílio empunha a tocha e parte alentando a chama entre os grandes na linhagem dos Machado d'Oliveira. Com ela bem acesa vence galhardamente pouco mais de dez lustros quando a entrega a seu filho José de Alcântara no prosseguimento de uma olímpica escalada de glória!

BARÃO BRASÍLIO MACHADO

Brasílio Augusto foi toda sua vida crente-praticante e, na expressão de Antônio de Alcântara, um exemplar "operário católico". Defendeu a Igreja e para ela trabalhou com exemplar devotamento na ordem social, civil e econômica. A Santa Sé reconhecida, com Leão XIII, confere-lhe a medalha "Pro Ecclesia et Pontífice" e com Pio X, o título de Barão da nobreza papal.
Na vida pública, no Segundo Reinado, militou no Partido Liberal e, na República, no Partido Católico Brasileiro. Leite Cordeiro em formoso trabalho sobre o Barão Brasílio Machado explica com precisão: "Durante a monarquia somente usufruiu da política os dissabores, as amarguras e desilusões. E se na República, por ela novamente viu-se tentado, foi porque o impulsionavam então a fé e os sentimentos religiosos. Eleito, teria defendido os princípios e as verdades da Religião Católica Apostólica Romana, pois era convictamente um católico, um crente sincero e esclarecido, um verdadeiro útil e combativo soldado do Cristianismo."

* * *
Se a política não lhe sorriu tendo sido por mais de uma feita derrotado em pleitos eleitorais, em outras atividades foi um constante vencedor de árduas lutas. Formado em Direito, ocupou a promotoria de justiça de Piracicaba, deixando sua passagem assinalada, na acolhedora cidade, por atos cuja lembrança perdura, como a desta estrofe lapidar:

Sacode os ombros nus, ó Noiva da Colina,
que a luz da madrugada encheu o largo céu!

Depois de graduar-se no doutorado das ciências jurídicas e sociais, deixa a promotoria. Prefere defender a acusar. Seguindo as pegadas do pai revela, em vários postos, sua capacidade administrativa. Na presidência do Estado do Paraná, 1884-1885, expande suas idéias libertadoras: abolição imediata da escravidão; instrução popular gratuita e generalizada.

MESTRE E TRIBUNO

Se o pai, o Brigadeiro Machado, pode ser considerado um pré-romântico, o filho, o Barão Brasílio enquadra-se no romantismo clássico. Com Castro Alves, alinhou-se entre os condoreiros; depois, deu aos seus versos um cunho de candidez adorável. Mas, acima de tudo, Brasílio Augusto foi um mestre de Direito e um tribuno excepcional.
Reynaldo Porchat e Pelágio Lobo apresentam os traços coloridos
que inspiram este retrato: "Era alto, magro, pálido, elegante nas maneiras e no trajar. Ostentava formosa a figura do homem bem talhado, amplo de espáduas, atitude senhorial de velho aristocrata, fronte vasta, cabeleira alvoroçada e fofa. olhar inflexível e flamejante. Transfigurava-se quando subia à tribuna. Porque então é que se lhe acendia, bem aceso no fundo das densas sobrancelhas negras, aquele olhar de magia. Iluminava-se. E o auditório se entregava todo a essa sedução que irradiava. Na cátedra, a exposição da idéia vinha aos borbotões, fluente e clara. Possuía ao mais alto e elevado grau as virtudes
primaciais do professor: clareza e concisão."

OBRAS-PRIMAS DE ELOQUÊNCIA

Ao que refere seu filho Alcântara, "só a tradição perpetua a imagem do tribuno forense que por consenso unânime foi o maior de seu tempo em sua terra". Como professor na Faculdade de Direito, também não lhe consentiu o destino escrever trabalho à altura de seus méritos Registradas, todavia, ficaram algumas de suas obras-primas de eloquência, não só das mais belas mas também "imprescindíveis à configuração da paisagem social de sua época".

* * *

Tome-se por exemplo a primeira e a última de suas memoráveis orações. Em 1881, Brasílio Machado abala "a cidadezinha sonolenta que era a Paulicéia", ao ensejo do tricentenário de Camões. Segundo seu filho e biógrafo, tal o entusiasmo despertado pelo discurso que muita gente sabia de cor trechos inteiros de que estes períodos dão amostra: "Portugal, essa nação pequenina que a Espanha comprime e o Oceano alarga. " essa nova Grécia dos argonautas da glória... esse mesquinho átomo de terra que na história tomou as proporções sobranceiras de uma montanha." Decorridos 35 anos de consagradores triunfos o Barão Brasílio Machado pronuncia uma de suas mais brilhantes alocuções. Foi num festival, em benefício da obra dos Tabernáculos da Catedral, "instituição destinada a alfaiar as igrejas". Alcântara Machado, sempre tão comedido nos encômios ao pai, desta feita afirma sem reserva: "Insuperável é o mimo, a doçura, a delicadeza no saudar a feitura de que ele chama esplendidamente o enxoval de Jesus."
Tamanha a influência de Brasílio Machado na criação da Academia Paulista, que foi eleito, sem competição, seu primeiro presidente, pronunciando na sessão inaugural discurso impregnado de poesia, em estilo de que era dos mais exímios cultores. De brilho singular refulge igualmente a oração com que recepcionou Vicente de Carvalho. Veja-se o primor deste trecho: "O mar e o amor como vos seduzem eles! Qual deles mais perfídia esconde? a mais tentações assanha em suas ternuras? mais vidas afoga no distender voluptuoso de suas vagas? mais sonhos dissipa na arrebatação de suas espumas? e tão enamorado andais do mar que na ternura de suas águas, sentis bruscos arrepios de mulher beijada..."

JOSÉ DE ALCÂNTARA MACHADO

Alcântara Machado, dos mais ilustres, na descendência de Antônio de Oliveira, que em 1532 aportara em São Vicente, seguiu os caminhos do pai na advocacia, no magistério, nas letras, procurando igualá-lo. "Esse ideal o acompanhou na infância, na adolescência e mesmo depois de homem feito e já famoso pelo labor de vários anos." Hoje, se num exame judicioso, essas duas vidas de tamanha magnitude podem ser igualadas, em vários de seus aspectos, a do filho sobreleva a do pai.

PEÇAS CLÁSSICAS

Na Academia Paulista de Letras, em que sucede a seu genitor na cadeira nº 1, Alcântara também ascende à presidência, exercendo-a com amor e desvelo, num momento em que o sodalício passava por incrível apatia. Com anterioridade fôra eleito para a Academia Brasileira, tendo tomado posse em sessão memorável, realizada finda a Epopéia Piratiningana. Na oração que proferiu, preparada com o esmero de sempre, mas em clima intensamente emocional, apresentou ao Brasil em termos do mais alto quilate a alma bandeirante, ferida, a sangrar, mas indomável nos seus verdadeiros ideais. Esta peça, e as que reuniu em Alocuções Acadêmicas, são hoje clássicas na língua portuguesa. Constituem mais uma demonstração desta verdade eterna: realizada sua função social as escolas passam, remanescendo apenas as obras marcadas com selo de beleza que só a genialidade estampa. São desse naipe as orações de Alcântara Machado, nas academias que tanto enalteceu e honrou.

* * *

Em seu livro Vida e Morte do Bandeirante aprofundou o estudo da
sociedade que vivia na pequena cidade colonial de onde partiam as incursões sertanejas que deram aos brasileiros o imenso território que ocupam. No mesmo terreno que Alfredo Ellis Júnior começou a revolver, por volta de 1922, Alcântara Machado descobre o filão de ouro de que extrai o conteúdo de sua obra, que é do mais precioso padrão literário. Sob o ponto-de-vista sociológico, a opinião de Sérgio Milliet é segura: numa época em que os estudos de sociologia não passavam de divagações filosófico-literárias, sobretudo na parte que diz respeito ao condicionamento do grupo pela influência determinante dos fatores econômicos e sociais, Alcântara Machado teve a noção clara de que o última análise, apenas um aspecto subjetivo da indivíduo é, em cultura."

CULTOR DO DIREITO

Na Congregação da Faculdade de Direito, Alcântara alcança seu
ponto alto quando assume o cargo de Diretor. O casarão das Arcadas era tido como intocável. Todavia assim não pensava o então responsável pela integridade daquelas vetustas paredes de pau-a-pique. E, nunca se aplicou melhor a sentença de que "o estilo é o homem". No rumoroso caso da construção do novo edifício da Escola, tal como transcende de seus escritos literários, conciliou a estética e a simplicidade das formas com a contingência da dura realidade social. Manteve o arcabouço antigo, adaptando-o às exigências de um São Paulo cem vezes maior, do que aquele que viu instalar-se, na Província, o Curso Jurídico.

* * *

Tamanho era o amor que Alcântara devotava à Cátedra, que ao seu filho Brasílio - que hoje tão viva mantém a tocha simbólica da estirpe dos d'Oliveira - determinou insistentemente que em seu funeral lhe vestisse a beca da Faculdade.
Emérito cultor do Direito, dentre os trabalhos que nesse campo nos legou figuram em primeiro plano os que se incorporaram ao Código Penal que, segundo Levi Carneiro, é fundamentalmente obra de Alcântara Machado, como o Código Civil é obra de Clóvis Bevilacqua.

ALELUIAS DA RESSURREIÇÃO

Encontrei-me com Alcântara Machado nos dias luminosos de 1932. Em plena peleja, tendo eu cumprido missão revolucionária no Rio de Janeiro, ao findar do mês de julho, consegui, a duras penas, regressar a Piratininga, rompendo o bloqueio da Ditadura. Exausto, esfarrapado, cheguei à casa paterna, onde, advertidos família e amigos, esperavam-me em festa. No dia seguinte, no primeiro jornal em que ponho os olhos, se me depara, como por encanto, uma oração de Alcântara Machado. Ela me deslumbra. Atente-se para esta passagem: "Bendito seja Deus que depois de ter-me feito assistir com a alma despedaçada ao calvário de São Paulo me concede a graça incomparável de ouvir as aleluias da ressurreição do Brasil."



MÃES PAULISTAS

A primeira impressão forte que tive em São Paulo foi, porém, a que me deu minha Mãe. Com lágrimas é que eu a recordo. A serenidade, o domínio de si mesma, diante dos riscos por que seus dois filhos passaram e dos perigos que, presumivelmente, ainda poderiam correr, contrastavam espantosamente com o nervosismo que explodia, a cada vez que qualquer contrariedade pudesse atingir a meu irmão ou a mim, pondo toda a razão de sua vida no nosso bem-estar, pelo qual zelava diuturnamente em seus atos e orações. É com emoção, que vibra em todo o meu ser, que avalio o que lhe custou a inquebrantável postura que manteve em meio de todas as tormentas da guerra, Mães paulistas dos heróis tombados, na evocação que faço de minha Mãe, curvo-me com unção sagrada, no altar das dores que suportastes pela liberdade dos rincões paulistas!

ESTRANHA BELEZA

Na rua, outra emoção me assalta, Ao ouvir o rufar dos tambores,
os toques de clarins e os acordes da "Paris-Belfort", a multidão que enchia as ruas para saudar seus soldados abria alas. Pobres e ricos, alinhados ombro a ombro, os voluntários eram saudados pelas mesmas palmas vibrantes, pelos mesmos vivas calorosos estrugindo das calçadas, das janelas e dos balcões. Quase todos os combatentes traziam seu fuzil florido, muitos tendo, a caminhar a seu lado, a esposa, ou a noiva, ou a namorada. Marchavam alegres, risonhos, procurando ostentar impecável garbo com o seu ritmado "plonque, plonque". E o episódio repetia-se todos os dias, idêntico na vibração, com uma diferença apenas: em entrando o mês de agosto, jovens e velhos desfilavam desarmados! Iriam receber suas carabinas nas linhas de fogo.
Sobre o ânimo dos moços. Alcântara nos dá este informe precioso: "Dizia-me um de meus filhos ao despedir-se de mim para cumprir o seu dever de homem livre: neste momento é preciso ser um herói, não para partir, mas para ficar."
Tinha razão Martins Fontes:
Jamais há de existir quem creia sem ter visto
o que foi esse assombro, esse espanto imprevisto.
Não menos tinha razão João Neves, ao dizer: "O espetáculo de São Paulo em armas entusiasmaria mesmo os céticos. Há uma estranha beleza nesta metamorfose marcial. Um povo de trabalhadores despe a blusa e veste a farda."

O MILAGRE PAULISTA!

Faltam bocas de fogo, escasseia a munição, os poucos canhões constitucionalistas se desgastam, a aviação é mínima. Mas São Paulo não podia cair com desonra! Recorre à mobilização integral dos recursos materiais, bem como da capacidade, da inteligência, da imaginação criadora dos homens. Industriais, professores da escola de Paula Souza, mestres, contramestres e operários unem seus esforços, num movimento de espontaneidade e eficiência totais. Realizam o que era tido como superior às possibilidades humanas. Fabricam máquinas complicadíssimas, e, partindo praticamente do marco zero, estavam realizando, ao fim da contenda, o suficiente para o municiamento de toda a tropa em doze frentes de combates cruentos. De eixos de rodas de vagão fizeram bombardas; do piche dos gasômetros de São Paulo e Santos, conseguiram o trotil necessário para as granadas de artilharia, chegando os politécnicos a criar produtos químicos, sem os quais seria o silêncio prematuro das armas paulistas. Os fatos se repetem em todos os ramos da atividade da guerra e nos serviços civis. A sentença passa à História: "A mobilização industrial de São Paulo, quando conhecida, assombrará o Mundo."
Glória maior cabe aos autores da miraculosa façanha: revelaram toda a potência humana dos engenheiros, empresários, artífices e industriários bandeirantes, que com energia hercúlea montaram e desenvolveram o parque industrial deste monumental São Paulo que aí está!

VONTADE ONÍMODA DE DAR

O fenômeno de integração social, que a massa popular da terra piratiningana realizou, não espanta menos. É, no dizer de Menotti Del Picchia: "a mais bela página da história jamais escrita por um povo no continente americano e talvez no mundo." O ardor cívico revelado foi, "num crescendo épico, até as fórmulas sociais, de renúncia, de bravura e de sacrifício ainda inéditos num agregado humano." A demonstração máxima desse fenômeno, na ordem civil, foi a vontade onímoda que se apossou do povo de São Paulo de dar, para a vitória, a qualquer preço e sacrifício, o que fosse possível. Um personagem abastado; na hora de seguir para a linha de frente outorga procuração, "em causa própria", ao Governador Pedro de Toledo, a fim de que
dispusesse da metade de seus bens em benefício da causa, enquanto
humílimos sitiantes ofereciam suas criações e alimentos, não se importando com o que viessem a padecer sem suas parquíssimas reservas. Nas iniciativas para angariar utilidades e recursos, da mais modesta à mais imponente - desde a campanha do ovo até a do ouro - os fatos se repetem. Numa lista de dádivas, ao lado das baixelas de prata, dos anéis de formatura, das alianças, figura o ouro da preta velha: um pacotinho de café! No extremo limite de sua pobreza, gente houve que, não tendo o que doar, jejua para que o dinheiro assim poupado reverta em benefício da causa defendida por São Paulo!

11 DE AGOSTO

Quem viveu a Epopéia jamais terá esquecido a voz de César Ladeira
e a triunfal batalha sonora travada por todos os intelectuais e pró-homens de Piratininga. Um deles assevera: "Poucas vezes se ouviram no País orações tão inspiradas, emulando os talentos na criação de páginas imortais." Dentre elas, uma sobreleva, não somente pelas circunstâncias em que foi proferida, mas também pelo que vale, como texto antológico.
Estávamos a 11 de agosto. Sob as arcadas do velho casarão do Território Livre do Largo de São Francisco, ao contrário das ruidosas festividades que nessa data, há mais de século, ali se celebravam, o silêncio era tumular, ausentes mestres e alunos. Em São Paulo, é um dia de guerra como qualquer outro. A noite, uma voz se faz ouvir.
Fala o Diretor Alcântara Machado: "O milagre do rádio permite ao homem compartir com Deus o poder da onipresença. Apertemos através do espaço, contra o peito, os corações fraternos e entre os dedos as mãos amigas. Fechai os olhos para que a ilusão seja completa, meus queridos e incomparáveis estudantes da Faculdade de Direito de São Paulo. Venho convidar-vos a assistir comigo a data luminosa de 11 de agosto. A Congregação acaba de entrar no salão nobre da escola tão vosso conhecido. Está completa. Compareceram todos, vivos e mortos: Ramalho, Crispiniano, Bonifácio, o moço, João Monteiro, Brasílio Machado, João Mendes, saem da tela, do mármore, do bronze e tomam assento no doutoral. Porque todos sabem que a sessão de hoje é a mais solene de quantas se realizaram nesta casa; e que nunca se fez mais oportuna a afirmação de que a Faculdade é o sacrário da lei, o sensório jurídico do País. A parte reservada ao auditório, aquela que costumais enfeitar com a vossa mocidade, a alegrar com a vossa turbulência parece vazia. Mas, se prestardes atenção, vereis que se vai povoando de sombras. São os nomes de quantos vos precederam nas arcadas do velho mosteiro franciscano que, sabendo-vos empenhados em defender as fronteiras territoriais de São Paulo hoje confundidas com as fronteiras morais da nacionalidade, vêm ocupar o lugar reservado aos estudantes."
Para o Diretor, cuja eloqüência chega ao clímax, a sala está super lotada das "maiores figuras da nobiliarquia espiritual do Brasil." Além dos mestres, faz falar os poetas: Fagundes Varela, Castro Alves, Pedro Luiz, Tobias Barrete e por fim Ruy. Alcântara exclama: "é o verbo do Direito, é o condestável da Liberdade, é a voz augusta do semeador das palavras eternas. Depois de Ruy ninguém tem mais o que dizer. E a Assembléia se dissolve."
Imensa é a multidão que, espalhada por São Paulo inteiro, contrita, embevecida, ouve e chora!

SÃO PAULO DA EPOPÉIA

Durante noites e noites, como aquela de 11 de agosto, empunhando
armas nas trincheiras varridas por um potencial de fogo jamais visto na América Latina, a mocidade paulista, coberta de bênçãos pelo seu povo, oferecia o bem supremo da vida à causa da justiça, da lei, da dignidade coletiva e, acima de tudo, da autonomia de São Paulo e das liberdades democráticas, trilha segura do progresso social.
Em todas as frentes de combate, empapou-se, por certo, o solo, do sangue de milhares de combatentes mortos e feridos. Mas, não foi inútil o sacrifício dos heróis Longe disso, em redutos como no Túnel, Piquete, Morro Verde, Pedreira, Pinheiro, Tombador, Cunha, Ligiana, Fundão, Pinheiral bem como nas barrancas do Paranapanema, nos líndes das Alterosas, em Mato Grosso e outros setores bateram-se nossos soldados pela causa da liberdade plantando marco indelével na majestosa estrada real do Mundo Livre que buscamos. Mundo em que todos tenham iguais possibilidades de acesso ao conhecimento dos fatos que regem a vida social e dela possam participar na plena igualdade e solidariedade coletiva. Não caberá jamais glória que ultrapasse a de servir à causa desse supremo ideal!

* * *

Não nos esqueçamos: dando seguimento a essa luta ciclópica, na Guerra Cívica, os membros da Academia Paulista de Letras estiveram nos postos de maior iniciativa, risco e responsabilidade; cada um segundo suas forças, suas aptidões e as circunstâncias da luta. Não há memória de um só que em pensamento ou ação contrariasse os ideais defendidos pelos brasileiros de São Paulo e Mato Grosso. Vejo-os aí, o Chefe da Grande Conjura e conjurados, o Tribuno e os tribunos: o Governante e assessores do governo; o Poeta e os poetas; os combatentes constitucionalistas, filhos de outros Estados; o glorioso soldado baleado no Espigão do Divino Mestre na arremetida que jogou serra abaixo as tropas invasoras.

ERNESTO LEME

Manda, porém, a justiça, manda meu coração, que nessa plêiade cintilante destaque neste momento a figura de Ernesto Leme, protótipo do voluntário que sendo professor, advogado, cidadão dos mais conceituados e queridos dos paulistas, trocou na refrega o posto que lhe fora confiado em serviço de guerra, na Capital, pela arma que empunhou, como simples fuzileiro, na primeira linha de fogo no baluarte heróico de Vila Queimada!
De que nesta Casa remanescem vivos os anelos de 1932 temos, entre tantas provas, a aplaudida designação de Ernesto Leme para integrar-me, Senhores Acadêmicos, na vossa excelsa companhia, em que sou admitido pela razão conhecida de haver divulgado, por graça de Deus, parte modesta do documentário dos feitos constitucionalistas!

PAULISTA EU SOU

Eis-me agora aqui, para convosco servir, neste ateneu da comunidade brasileira, no seio de nosso amado e epopéico povo paulista.
Apraz-me repetir-vos as mesmas palavras que pronunciei há meio século passado, no Grêmio Literário Álvares de Azevedo, ao saudar os voluntários de manobras de 1916, alistados na seqüência da campanha nacionalista encetada por Olavo Bilac: "Creio, com todo o ardor de meu coração de crente fervoroso, no esplêndido destino de um Brasil Eterno:"
Hoje, em minha alma, elas se completam com as sentenças imperecíveis de Alcântara Machado, postas em verso por Martins Fontes:

"Paulista eu sou há quatrocentos anos:
Imortal, indomável, infinita,
Dos mortos de que venho, ressuscita
A alma dos bandeirantes sobre-humanos.

Tenho o orgulho dos nossos altiplanos.
Tenho a paixão da gleba circunscrita.
Quero morrer, ouvindo a voz bendita
Dos pausados cantares paulistanos.

De minha terra, para minha terra,
Tenho vivido. Meu amor encerra
A adoração de tudo quanto é nosso.

Por ela sonho num perpétuo enlevo.
E, incapaz de servi-la quanto devo,
Quero ao menos amá-la quanto posso."




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