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DISCURSO DE RECEPÇÃO PELO ACADÊMICO CASSIANO RICARDO
Acadêmico: Osmar Muniz Pimentel
"Agora vamos viver na mesma casa de cultura e amizade que é esta Academia. Em contato uns com os outros, o espiritual permanente nos coloca face a face, diante da vida."

Senhor Osmar Pimentel, nosso novo Colega:
Sois paulista do Vale do Paraíba, com nostalgia da Mantiqueira. Também eu, e com que emoção. Minha cidade é irmã de vossa Lorena, na História e no caráter da geografia. Somos, portanto, irmãos pela mesma paisagem e graça que nos concedeu a fortuna.

O AMOR À BELEZA

Agora vamos viver na mesma casa de cultura e amizade que é esta Academia. Em contato uns com os outros, o espiritual permanente nos coloca face a face, diante da vida.
Há aqui dentro os que aprendem a arte de envelhecer, amavelmente, sem se fazer notar; ou de não notar que os demais também envelhecem, ou envelhecerão um dia, agraciados com a juventude acadêmica. O amor à Beleza nos coloca na situação daquele homem que ficou velho sem o saber, porque ouvindo o canto do pássaro.
Algo, porém, de grave nos une para o compromisso mais alto que é o do prestígio da instituição a que pertencemos. De modo que o vosso pensamento sobre as duas culturas em renovado diálogo - humanismo e ciência - bem como no setor específico da invenção literária, constitui por si a direção certa que tomais na Casa de que hoje vindes a fazer parte.

A ACADEMIA E 22

Enganam-se os que supõem esta Academia avessa aos problemas estéticos de vanguarda. Os exemplos que há pouco apontastes provam que não, porque incluem os rebeldes de 22: Mário de Andrade, Menotti Del Picchia, Cândido Mota Filho, Guilherme de Almeida.
Entre eles citastes Oswald de Andrade que se candidatou não a esta
mas à outra, a Academia Brasileira, numa carta famosa, na qual prometia descer de pára-quedas sobre a Casa de Machado de Assis. Fui testemunha pessoal do seu desejo; ou melhor, fui o único a votar no nome do genial autor de "Serafim Ponte-Grande". E sei que ele, embora "blagueur" incorrigível, gostaria também de pertencer à Paulista. Por que não?
A verdade é que os mais antiacadêmicos, como Oswald, alimentam o desejo secreto de serem acadêmicos. Ainda há poucos dias, era Ionesco, tremendamente antiacadêmico, o eleito para a Academia Francesa e se manifestando satisfeitíssimo de o ter sido.
Como se vê, nem as Academias menosprezam os novos; nem os novos desdenham das Academias.

UM RETRATO EXATO

Ditas estas palavras, à guisa de preâmbulo, para a saudação que a Academia me incumbiu de vos dirigir, quero expressar-vos a excelente impressão que nos causastes com o vosso discurso de posse. O perfil de Paulo Nogueira Filho, como figura humana, político de idéias avançadas, escritor de estilo sóbrio, correto, adequado aos temas dos seus livros - não raro admiráveis -, foi por vós poderosamente xilogravado, e com mão de mestre.
Não esquecestes um ângulo, sequer, da sua sedutora fisionomia
intelectual, do seu labor como homem de empresa, do historiador honesto e claro que ele foi, da lição pioneira que está na obra múltipla que realizou em favor do Brasil na busca de solução para os nossos problemas cruciais.
Era Paulo muito paulista - dissestes - pra deixar de trabalhar. Acrescentarei que possuía ele a mística do trabalho em seu mais fascinante sentido social, redoirando-lhe a ação aquilo que Charles Morgan chamou "poesia da experiência humana".
A "santidade do trabalho" terá sido o seu emblema, na vida particular como na pública.
Para isso - bem o lembrastes - herdou o exemplo do avô, o carlyleano José Paulino. Herdou ainda, digo eu, a nobreza dos velhos habitantes de S. Paulo de Piratininga, orgulhosos de mostrar - como rezam os documentos - as mãos calejadas.

O CRÍTICO E O ESTILISTA

Senhor Osmar Pimentel:
Sois - e eu já tive ocasião de dizer - justamente aplaudido como um dos mais argutos e bem informados críticos literários do Brasil.
Assim vos consideram nomes da categoria de Carlos Drummond de Andrade, Otto Maria Carpeaux, Gilberto Freyre, Cecília Meireles, Mauro Mota, Moisés Vellinho, pra citar apenas intelectuais não nascidos em São Paulo.
Vossa obra original é constituída por vários livros, como "Apontamentos de Leitura", "A Lâmpada e o Passado", "Direito e Sociologia", "A Norma Jurídica e o Fator Econômico", "São Paulo, Povo e Instituições" (este em colaboração com o ilustre prof. Freitas Marcondes) e "A Cruz e o Martelo" - último da série.
Toda ela versa sobre temas e conceitos de suma atualidade no mundo das idéias e notadamente na literatura, em que sois mestre incontestável. Dois traços comuns a todos os vossos trabalhos: o do estilista e o do crítico. Dono de um estilo próprio, que é marca intransferível da vossa personalidade; isto é, dono da língua que é nossa mas que toma, em vosso caso, um caráter de raro bom gosto nas palavras e no modo de utilizá-las; na arte de escrever, exprimir e veicular conceitos que não conhecem o lugar comum porque a serviço de uma primorosa educação estética. Sois bem a prova de que certo gramaticalismo simplório e rabugento nada tem mais que fazer diante da estilística, como diria esse grande filólogo moderno que se chamou Matoso Câmara Júnior.
Não que desdenheis da gramática, não; mas porque vos colocais acima das categorias gramaticais pra valorizar a palavra em seus elementos afetivos (como o entende um Karl Vossler) e construir a frase com o fascínio da forma capaz de aprimorar a dicção artística e até mesmo poética em seu alto sentido.
O estilo então não é o homem; o homem é quem cria o estilo. Uma espécie de "mot total" ou de dialeto lírico transfigurado de que ainda agora nos destes a prova em vossa formosa oração de posse.

MESTRES PREFERIDOS

Sei que vos iniciastes com os mestres franceses, encontrando neles a clareza expositiva, a lucidez dos juízos de valor. Taine, primeiro; depois Thibaudet - este já com um gênero de crítica sensível mas universitária. Depois vem o vosso mestre de idéias, Julien Benda (na época), que foi decisivo acontecimento intelectual na vossa vida. Mas a análise puramente estilística, formal, não satisfez ainda ao vosso ideário critico.
A crítica literária inglesa é que viria a tornar-se para vós a mais profunda e objetiva de hoje, com Richards. Entretanto, confessais que a leitura do estudo pioneiro de Phillip Weelmright sobre a linguagem da poesia é que vos deu, pela primeira vez, idéia válida das dimensões do fenômeno poético sob perspectiva crítica.
O vosso essencial centro de interesse é hoje a pesquisa da criação original em literatura, nas artes e nas ciências.

"TUPI OR NOT TUPI"

Será o tupi uma língua morta?
A pergunta poderá parecer impertinente a esta altura de minha saudação. Escrevendo sobre o "Curso de Tupi Antigo" do padre Lemos Barbosa, tivestes ocasião de dizer que o trabalho em apreço nos dá a impressão de um idioma vivo e, sob certo aspecto, atual.
Fostes prudente, a meu ver, na ressalva, como de boa suspicácia foi aludirdes ao "tupi or not tupi" de Oswald de Andrade, do manifesto antropofágico.
Não me parece despiciendo (como se diz em linguagem acadêmica) um ligeiro acréscimo a tão sedutor tema, hoje.
Sabe-se que grande parte do Movimento Modernista de 22 foi neo-indianista. O próprio Oswald inseriu na sua obra um poema tupi que Couto de Magalhães havia recolhido em "O Selvagem":

"Catiti catiti
Imara Notiá
Notiá Imara
Ipeju"

O grupo "Anta", com Valdomiro Silveira, Plínio Salgado e Raul Bopp, estudou e aprendeu tupi em plena década da Semana de Arte Moderna. Mário de Andrade foi indianista em "Macunaíma" e em "Toada do Pai do Mato". Guilherme de Almeida num dos trechos do poema "Raça"; Manuel Bandeira em "Cunhantã"; Menotti del Picchia num poema de "Chuva de Pedra", em que fala do Caapora espaventando com o seu cachimbo os deuses gregos; e Raul Bopp, em "Cobra Norato".
O grupo "Anta" e a "Antropofagia" se me afiguram provas de um tupi então vivo ou, pelo menos, revivido com os estudos da língua e da contribuição com que abalou a fonética lusa, cooperando também enormemente pra nossa riqueza vocabular ainda hoje vigente.

SILVAMOONLAKE & TAPIRAÇUUAÇATAMAUARA

Mas, não é só. Adota-se, num de nossos experimentos de vanguarda, o "silvamoonlake" (silva/silves + moon + lake/Iike) de Joyce; silver, prata; moon, lua; lake, lago; vai-se ver, a fonte da "palavra-montagem" estava aqui mesmo, na língua tupi ou primitiva:
Boi, por ex.: - pareceu ao nosso índio, grande como a anta (tapir), mastigador como o veado (çuu), de grades chifres (aça) e por fim, estrangeiro que vem comer em nossa casa (tamauara) e assim recebeu, por imaginação visual, sintético-ideogramicamente, o vistoso nome de "tapiraçuuaçatamauara".
Busca o vanguardismo de 62 em Gomringer, ou em Gertrude Stein, o recurso da "reduplicação"; vai-se ver, já estava em "uatu-u-u-u-u", dos nossos botocudos. Água corrente (uatu) configurando oceano (u-u-u-u) como num poema concreto "areia areia areia" configurando deserto e "árvore árvore árvore" configurando floresta.
Diferença - repetição de sílabas: "uatu u-u-u-u" ao invés de palavras. Mas o processo é o mesmo, geltáltico.
Daí as redundâncias e a ostensiva qualidade fônica já do neo-indianismo dos poetas de 22, como em "Berimbau", Manuel Bandeira:

"Chama o saci si si si si,
ui ui ui ui ui uiva a lara.
A mameluca é uma maluca.
Saiu sozinha da maloca.
O boto bate - bite bite...
Quem ofendeu a mameluca?
Foi o boto."

Buscou-se a "coisificação" da palavra em Francis Ponge; vai-se ver, já estava na língua tupi em que "objeto e palavra se identificam fisicamente" inseparáveis ("is close to the object that two are identified", como diria Mathiessen). Idioma substantivo, com a vantagem de não incorrer no "substantivo totalitário" de hoje, de que nos fala Marcuse.
Revive-se agora a teoria dos sinais, sob forma mecânica; vai-se ver, já os sinais fazem parte da comunicação tribal, inclusive do tupi.
A todo momento estamos pronunciando palavras tupis em nossa fala cotidiana: Ipiranga, Sumaré, Tietê, Anhembi, Anhangabaú, etc., sem contar os topônimos que enxameiam na geografia nacional, como demonstra Teodoro Sampaio.
Mesmo como língua ainda em pleno uso e função, convém advertir, iremos encontrá-la entre os indígenas de Araribá, aqueles com os quais, em nosso Estado, o etnólogo Kurt Nimuendaju manteve contato até pouco tempo antes de falecer.
Há evidências mais recentes ainda, como a do tupi (nheengatu) falado hoje não só por índios mas até, como se sabe, pelos caboclos de toda a Amazônia.
A vossa ressalva de que o tupi do padre Barbosa parece uma língua viva, tem, pois, inteira razão de ser. Nem é só na Amazônia que vamos localizar o grupo tupi. No meio-oeste do Brasil também; e isso se comprova com o notável trabalho de pesquisa de campo, rigorosamente positivo da sociedade e da cultura tapirapé, como uma tonalidade, realizado pelo prof. Herbert Baldus (veja-se o seu livro "Tapirapé - tribo tupi do Brasil Central"). No Brasil todo, os tupis, ou, no mínimo, tupi-guaranis, formam pequenos, mas representativos grupos sociais, possuidores de cultura própria (valores, significados, atitudes, tradições, técnicas e divisão de trabalho, padrões de comportamento, usos e costumes).
Entre eles a língua tupi continua sendo empregada, ao lado do português acaboclado que às vezes falam pra se comunicar com o branco da civilização.
Morta que estivesse pra nós, revivida teria sido para o neo-indianismo de 22 e viva continua pra nossos irmãos da selva. Enquanto existir um grupo social com organização e cultura própria que use uma língua própria, não se pode dizer, logicamente que essa língua está morta.
Será um grupo vivo falando uma língua viva.

"O SANTUÁRIO", DE FAULKNER

A ficção moderna, desde Faulkner a Joyce, vos é familiar e objeto de vários estudos, ricos de agudeza.
Os que leram Faulkner (devo acrescentar) se queixam da sua impolidez, da sua perversidade narrativa mas talvez o façam porque não compreendem as razões secretas - direi melhor poéticas - que o terão levado a assim proceder. Não raro arrebata ele a Proust a palma dos períodos intermináveis e escreve, por ex., uma frase que ocupa mais de seis páginas de "Go Down, Moses"; às vezes, como frisei em "A Poesia na Técnica do Romance", é propositadamente obscuro, qual um Mallarmé americano. Outras vezes a crítica lhe põe em dúvida a concepção de tempo. Mas a sua significação profunda - como alguém já perguntou - não se situará além do falso e do verdadeiro? acima das categorias estéticas usuais?
Em "Santuário", alega-se, batiza ele uma história sórdida. Daí a fórmula célebre segundo a qual com "Santuário" 'a tragédia grega irrompe no drama policial.
Pois bem. Na revisão crítica, que estais escrevendo, sei que o famoso e tão mal compreendido romance faulkneriano é por vós encarado sob justa perspectiva, ainda não versada pela crítica de língua inglesa ou francesa.




A QUESTÃO PIRANDELIANA

Tanto, porém, abordais a questão "tupi or not tupi" oswaldiana como a pirandeliana, não menos instigante, não menos provocante.
Sabeis também provocar (sem dar muito na vista) e tanto entrais - bom valeparaibano que sois - no mundo mágico do selvagem como no mundo pirandeliano que considerais alheio a qualquer sofisticação interior, antes, dotado de uma espécie de alma primitiva, mais próxima da rude linguagem sincera da vida.
Os marionetes foram a sedução mágica do então menino Pirandello,
único, mas dissociado dos "seis personagens em busca do autor". Como o nosso currupira, que muda de rosto (creio que pelo menos seis vezes por dia) pra ser sempre um só, segundo a fábula indígena.
Estudastes, admiravelmente a vida e a obra do irrequieto escritor num dos capítulos de "A Cruz e o Martelo"; aludistes ao ataque crítico de Pirandello a Croce, cuja estética lhe pareceu abstrata, manca e rudimentar; uma estética intelectual, apenas cheia de sofismas e contradições. Sei que no curso sobre o inexcedível siciliano, realizado em São Paulo, em 1967, como me fez notar Lourdes Fonseca Ricardo, que lá esteve, como jornalista que é, destes duas aulas que constituíram alta e variadíssima demonstração de cultura e visão crítica marcada por inconfundível senso de equilíbrio na explicitação dos pontos fundamentais da obra e do homem Pirandello.
A máxima preferida por Pirandelo talvez provenha de Montaigne. Em "L'Avemaria de Bobbio" o autor de "O Falecido Matias Pascal" coloca o primeiro volume dos "Essais", do célebre francês, sobre os olhos do personagem, destacando o trecho em que ele afirma: "É loucura trazer o verdadeiro e o falso até o nível da nossa compreensão."
É o que se deduz, por ex., de "Cosi é, se vi pare", um jogo da realidade com a aparência, ou seja, um jogo de equívocos por si mesmo recriativo e recreativo, senão altamente poético.

A "RAIVA DIALÉTICA"

Não só os marionetes ficaram marcando o espírito de Pirandello desde a meninice. Há muito mais. Em vossas aulas sobre a personalidade e a obra do escritor italiano que revolucionou toda a problemática do teatro mundial de sua época, influenciando até o teatro mais moderno (um Ionesco, um Brecht) com o clima que Morpurgo chama de "raiva dialética", onde os personagens "ragionano spesso insaziavelmente: per veder sempre piu a fondo" - nessas aulas, dizia eu, levantastes com rara argúcia um ponto fundamental para a compreensão do fenômeno pirandeliano: os seus três desconcertantes encontros com a Verdade. O episódio de "La Madonnina", o do velório aparentemente vazio e, por último, o terrível drama do "biglietto d'amore" que a esposa encontrou, por acaso, no bolso do sobretudo do escritor.
Destaco um dos episódios: o do menino Pirandello, sozinho, no velório deserto, à hora do almoço, diante do mistério da morte, mas perturbado, minutos depois, ao descobrir que atrás do painel coberto de crepe o guarda oficial e a namorada se beijavam segredando ternuras.
As duas faces da verdade que sempre o atormentaram lá estavam: uma, a solidão, o solilóquio diante da eternidade; a outra, o diálogo com a vida.

PIRANDELLO E CROCE

Bem andastes, a meu ver, dando razão a Pirandello contra Croce e sua estética cheia de sofismas.
Por mim direi também que não se entende Croce quando diz uma coisa certa, como "Sorbonne nullum jus in Parnasso" (a Filosofia não tem nenhum poder sobre a Poesia) e depois afirma: uma forma de morrer no mundo da Poesia é cair no mundo da Crítica e da Realidade.
Pirandello tinha razão em chamá-lo de contraditório. Pois não era o próprio Croce que admitia como nesse conceito que estou citando por minha conta, uma espécie de "modulo de controle" com que a poesia se freia internamente ("sibi imperiosa", segundo Horácio)? E como chamar a esse módulo de controle senão de crítica, inerente à Poesia? Não fala ele até de uma "crítica obstétrica"?
Que a Filosofia não tenha nenhum poder sobre a Poesia, vá lá; mas o poema tem a sua filosofia. A poética de hoje e (enquanto se refere à criação lírico-formal) é a filosofia do poema. Ninguém o ignora. Um olho crítico e outro lírico - eis como se conduz o poeta de hoje. O trabalho artístico - observa muito bem Fábio Lucas - cria também, no ato de revelar-se, sua própria crítica.
Crítico consciencioso que sois, não precisareis de ser pirandeliano, como sois também, pra não aceitardes o exagero de uma "crítica obstétrica", muito menos o absurdo de que uma forma de morrer no mundo da Poesia será cair no da Crítica e da Realidade. Antes, a poesia é uma forma de realidade - a realidade humana em seu ser profundo.

A QUESTÃO JOYCEANA

Aludi à versão que dareis ao "Santuário", de Faulkner.
Outro escritor revolucionário do romance que prendeu vossa atenção é Joyce, criador de "Ulisses", muito em situação ultimamente, tomando-se uma simples invenção de palavras a seu modo, como a que citei - "silvamoonlake" - pra modelo dos experimentos de vanguarda.
Em lúcido ensaio publicado em vosso livro "A Lâmpada e o Passado", apreciais devidamente a tradução feita, no Brasil, por Antônio Houaiss, do "Ulisses" extraordinário romance que se colocou, e ainda se coloca, como verdadeiro labirinto em que se debatem os exegetas do fabuloso irlandês.
Fazeis justiça a Antônio Houaiss que realmente praticou uma "performance" de quase impossível realização e notais judiciosamente que a controvérsia sobre o sentido de "Ulisses" começa no título do romance. Será exagerado, porém - afirmastes - que cada leitor acaba atribuindo ao livro um sentido pessoal intransferível.
Ou que cada leitor tem o "Ulisses que merece".

O "FATO ESTÉTICO TOTAL"

Parafraseando o que dissestes, direi: no Brasil, pelo menos, "Ulisses" teve a tradução que mereceu. Uma competente tradução criadora como a de Houaiss. E acrescentarei ainda: mereceu não só o tradutor que teve como o comentador crítico que vos revelastes ao tratar de "Ulisses" e seus angustiantes problemas de leitura e interpretação que têm escapado ao domínio da micro e da macro-análise como um "fato estético total".
O que apaixona na famosa obra de Joyce (tão cheia de espaço-tempo dubliniano) é, primeiro: o discutido mas indiscutível monólogo interior de Molly Bloom, que muitos acreditam, segundo vossa observação, tratar-se de uma "lírica aceitação corpórea dos valores do ser e do existir". Em segundo lugar, a controvertida estética tomista do romance.

O SENTIDO DE "ULISSES"

Ocorre-me aqui aquela "boutade" de Harry Lewin que Leonardo Arroyo enfatizou tão sagazmente. As tentativas embaraçantes de explicar a outra obra de Joyce, "Finnegan's Wake", são como as de um cego de Esopo em relação ao elefante por falta de perspectiva.
O que surpreende no vosso estudo é justamente o conhecimento que evidenciastes na impostação crítica das interpretações até hoje tendentes a atingir o que se costuma chamar "o sentido de "Ulisses"; a interpretação dublinense, a simbólica, a da saga homérica. Preferis a do professor William Powell Jones; Joyce teve a intenção de "pintar"; no sentido pascaliano (como frisais) o enigma do homem moderno em termos da história moral de Dublin".

PROUST, TAMBÉM

E como esquecer o estudo que, em "Apontamentos de Leitura", fizestes sobre Proust, na mesma linha universal de Joyce, Pirandello, Faulkner?
Nada deixastes de focalizar na apreciação de "À la Recherche du
Temps Perdu": a "mínúcia infinitesimal" das descrições que ele faz, por ex., das flores e aléias de Combray; a página de sondagem psicológica e científica que é a do ciúme de Swann; a questão da "memória involuntária"; a lei das "intermitências do coração": a técnica do romance à século XX em contraposição ao de Balzac, século XIX.
Proust, um hedonista? Não; dizeis, com rara objetividade. O que ele não viu foi o mundo demagogicamente visto de uma tribuna da praça pública ou de uma barricada de rua. Viu-o, como esclarece Benjamin Crémieux, não pela narrativa gratuita da vida mundana, na França, ao início deste século, mas através do espelho de uma crise violenta de índole social.
Lembre-se apenas aquela passagem da população operária de Balbec indo espiar, pela parede de vidro, como num aquário, os convivas do banquete; gente luxuosa tão estranha para os pobres como a dos peixes e moluscos. Uma questão social (escreve Proust) de saber se a parede de vidro protegerá sempre o festim dos animais maravilhosos ou não irá colhê-los em seu aquário e devorá-los.
Sobre a imagética proustiana, em abono do que dizeis, recorro à sua conhecida metáfora, aquela referente aos livros de Bergotte, após sua morte, e que pareciam anjos de asas abertas anunciando a ressurreição.
A vossa análise é bem mais complexa mas estou apenas mencionando alguns dos dados que tiveram em vossa crítica a valorização, o realce que mereciam.

OUTROS ESTUDOS

Os estudos que reunistes em livro são, em geral, dignos de referência na homenagem que a Academia vos presta.
Impossível fazê-lo, nesta simples visão retrospectiva. Mencionarei apenas "Euclides da Cunha, o Homem e a Obra", em que analisais os erros da crítica indígena em torno de "Os Sertões", cujo autor elaborou a primeira teoria científica e trágica da civilização brasileira. Razão de sobra vos assiste, aí, em afirmar que "Os Sertões" são obra de arte e ciência, a um só tempo; a ciência e a arte se completam na descrição insólita do real e do social, no conflito só agora compreendido (e até certo ponto corrigido) entre o litoral e o sertão. Mencionarei também, o vosso estudo "O Crítico de Arte" sobre o importante trabalho "Teatro em Progresso" de Décio de Almeida Prado; e mais o "Selvagem Palmeira do Mundo", sobre a esplêndida versão italiana do "Corpo de Baile", de Guimarães Rosa, assinada por Edoardo Bizzarri, ilustre tradutor, num sentido também estético e criativo, de vários livros brasileiros, hoje na língua de Dante; o estudo "Freud: 25 Anos Depois", em que focalizais as consequências negativas oriundas do rompimento das relações entre o autor de "Cinco Lições Sobre a Psicanálise" e C. G. Jung, o mestre do "inconsciente coletivo".

O CRÍTICO DE POESIA

Vossa principal especialização - ia eu dizendo - no setor da crítica, é o da crítica de poesia.
Tendo sido dos primeiros, nos idos de 1940, a escrever, no Brasil, sobre o "new criticism" anglo-americano, não vos limitastes ao enfoque apenas informacional. Ao contrário, criticastes o próprio "new critícism", apontando-lhe os méritos e os senões. E de tal forma o fizestes que o nosso Sérgio Buarque de Holanda, cuja autoridade na matéria ninguém contesta, realçou, em artigo publicado no "Diário de Notícias", do Rio, o fato de o haverdes feito criativamente, o que vem a ser, sem nenhuma subserviência intelectual à nova metodologia da crítica literária.
Resultado: não desprezais, no julgamento crítico, uma atitude inicial impressionista, a fim de apreciar a obra em exame pela repercussão que ela vos causa, de acordo com o grau de cultura e sensibilidade de que sois dotado. Só depois dessa impressão inicial é que entrais na estrutura do poema, na inspeção dos valores formais que o integram, na exegese do que ele possa apresentar de obscuro, naquele jogo do intelecto com as palavras que é a logopéia poundiana.
Natural o apreço que dispensais à técnica imagística, à comunicação, à informação, à linguagem como instrumento de investigação poética; mesmo porque "poetry is a kind of language". Então vossa crítica se estende à complexidade do poema de hoje, nunca dissociada do fenômeno poético em si, daquele dom que existe no âmago de cada criatura e a que Cassirer chama de uma condição humana prototípica. Amais a Beleza, como a ama vosso companheiro Péricles E. da Silva Ramos, que é o nosso valeparaibano "grego" como sais valeparaibano nascido na Guanabara, mas de Lorena, onde desabrochou a vossa sensibilidade poética nativa, que fez da Poesia uma suprema forma de Beleza.

POESIA E FINGIMENTO

Aludistes, em vosso estudo sobre "Experiência em Poesia", à poesia como "fingimento", baseando-vos em Shakespeare, quando dizeis: "Pode ler-se no Shakespeare de "As you like it":
"Audrey - I do not know what poetical is. Is it honest in deed and word? Is it a true thing?"
Audrey - Eu não sei o que é poesia. Será ela sincera em ação e palavra? Será ela uma coisa verdadeira?
"Touchstone - No truly; for the truest poetry is the most feigning." Touchstone - Não realmente; porque a poesia mais verdadeira é a mais fingida."
Não parece razoável (perguntais) admitir que Pessoa tenha apreendido, nesse fragmento, a doutrina da poesia como fingimento e, por isso mesmo, do poeta como fingidor? E respondeu: "Creio que sim".
Está aqui um ponto onde me permito lembrar que muito antes de Shakespeare, o marquês de Santillana, em carta que enviou ao condestável de Portugal, como se vê no apêndice III ao I volume das "Obras Completas" de Menendez y Pelayo, perguntava: "que coisa é a poesia (que em nossa vulgar gaia ciência chamamos) senão um fingimento de coisas úteis?"
Isto ao tempo do medievo.
Creio, pois, que se Fernando Pessoa aludiu a alguém foi talvez ao Marquês de Santillana, não a Shakespeare.
Afinal, será o poeta um fingidor?
O que me parece certo é que, mesmo quando finge, cria ele uma situação humana que será verdadeira para quem o lê. A verdade, se não está então no que o poeta finge sentir, estará no leitor em cuja sensibilidade o "fingido" passa a ser verdadeiro.

O CRÍTICO DE "JEREMIAS"

Gostarei contudo de dar um testemunho pessoal do que é vossa crítica. Tenho em mim as marcas do que ela é.
Fui investigado em minhas intenções mais ocultas por vossa análise espectral e formal, esta última na concepção de "Jeremias Sem Chorar" como poema esfero-rolante.
É que vossa crítica não se limitou ao exame exterior do poema; entrou no seu contexto e chegou às regiões adormecidas do meu mundo interior - como o fizeste ainda no "Soneto da Ausente" em que falo da minha Rosamusa.
O amável repto que me lançais a respeito de uma "teoria do ritmo" na poesia de vanguarda e outro sobre o "tempo poético" muito me seduziu. Tentarei uma resposta nas notas que escrevi para meu próximo e novo poema "Os Sobreviventes".

A GERAÇÃO DE 45

Em "A Geração de 45" soubestes compreender-lhe, em lúcida síntese, o ideário poético e estético e situar, cuidadosamente, os seus valores representativos entre os quais Péricles E. da Silva Ramos, o grande teórico do novo ciclo modernista. Aí figuram, com acerto, os nomes de João Cabral de Melo Neto, Domingos Carvalho da Silva, Afonso Félix de Souza, André Carneiro, Cassiano Nunes, Afrânio Zucoloto, Ciro Pimentel, Paulo Mendes de Almeida, Geraldo Vidigal, Idelma Ribeiro de Faria, Ledo Ivo, Mário da Silva Brito, João Acioli, Renata Pallotini (entre outros, é evidente).
Nem deixastes de reconhecer como de repercussão nacional o concretismo e práxis que sucederam a 45.
Mas há, nesse estudo, em que crítica e justiça se fazem irmãs de ofício, uma observação que ainda gostarei de citar: a do risco que corre certa poesia de parecer e até ser pura reportagem ritmada com algum efeito lírico. Seria um caso de "proesia", apenas, isto é, "texto literário que já não sendo prosa ainda não é poesia".
Pareceu-me magistral a observação em favor justamente do poema que não seja outra coisa senão poema considerado em sua autonomia, ou melhor: que não seja apenas "proesia"; "proesia do vosso "achado": espécie de prosa ambígua, furtacor.
Foi o que também pretendi em modesto ensaio - o poema como poema; corpo verbal específico da poesia.
Conheceis todas as teorias vigentes, relativas à especialidade que adotastes - porque, a bem dizer, sois um verdadeiro poeta como crítico; sabeis discernir bem o ponto onde crítica e poesia se fazem heterônimas; sabeis que não há poeta digno desse nome que não seja um crítico de si mesmo, como afirmei há pouco, - pela autognose e pela renovação formal.



TRAÇOS BIOGRÁFICOS

Senhor Governador, meus caros colegas, exmas. senhoras e meus senhores:
Osmar Pimentel nasceu no Estado da Guanabara. Mas, com menos de um ano de idade, foi residir em Lorena, no Vale do Paraíba paulista. Ali fez o curso primário e secundário, no Ginásio São Joaquim.
Crê dever à cidade e ao ginásio a formação e delineamento de sua personalidade literária. A cidade - situada no belo Vale despertou-lhe a sensibilidade para a poesia e permitiu-lhe iniciar-se, anda adolescente, no jornalismo interiorano.
Teve, desde menino, paixão pela leitura. O primeiro livro lido, por sugestão de um amigo do seu pai, foi "O Crime do Padre Amaro". Leu esse romance, aos 13 anos, três vezes consecutivas. E começou a "devorar" os livros da biblioteca da unidade militar da cidade, onde o pai era tenente.
Matriculando-se, em 1933, na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, foi um dos que renovaram a chamada literatura acadêmica, trazendo-a do soneto em forma de fôrma (tão diferente do soneto moderno) e do acróstico, para a poesia atual, inspirada, em grande parte, no modernismo de 22. Foi Osmar Pimentel quem saudou Gilberto Freyre, por ocasião da conferência que o mestre pronunciou em São Paulo sobre "Menos Doutrina, mais Análise".
Fez jornalismo - especialmente jornalismo de idéias literárias - em diversos órgãos de imprensa paulistanos, de alguns dos quais, "Folha da Manhã", "Jornal da Manhã", "Jornal de São Paulo" - se tornou crítico literário
efetivo.

CONCLUSÃO

Sr. Osmar Pimentel:
Já vai longa esta saudação ao novo acadêmico, que virá trazer a esta Casa a contribuição de sua inteligência e saber.
E que terá, estou certo, ao lado de Octacílio de Carvalho Lopes, mestre Fernando de Azevedo, Afrânio do Amaral, Francisco Marins, Ernesto Leme, José Soares de Melo, Luís Martins, enfim de todos os ilustres colegas que fazem parte desta Casa, papel de máxima relevância no desenvolvimento do nosso programa cultural, posto em termos de um melhor entrosamento com os problemas profissionais e direitos do escritor na sociedade de hoje.
Cabe-me - é um dever de consciência - agradecer agora as palavras por demais benévolas mas consagradoras com que me distinguistes no final de vossa primorosa oração.
Entendeis que o escritor autêntico, aquele que escreve porque precisa viver em liberdade de espírito, é sempre o anti-Macunaíma. Precisa, antes de mais nada, de ter caráter. Caráter de estilo e de pessoa humana.
Esse caráter é que não vos falta, sr. Osmar Pimentel.
Sei, portanto, aferir a importância do que dizeis, acima das conjunturas de amizade e companheirismo.
Recebei, com as boas vindas da Academia, o meu comovido abraço fraternal e valeparaibano.




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