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DISCURSO DE RECEPÇÃO PELO ACADÊMICO GABRIEL CHALITA
Acadêmico: Dom Fernando Antônio Figueiredo
"Traga consigo Agostinho de Hipona e Francisco de Assis. Traga também as suas inquietações. Mas não se esqueça de trazer a esperança. A esperança, convidada freqüente de sua prosa, vai dar mais acalento ao nosso recanto das letras. À beleza de Academia que temos a honra de frequentar."

Excelentíssimo Presidente da Academia Paulista de Letras, Desembargador José Renato Nalini. Senhoras Acadêmicas. Senhores Acadêmicos.

Tarde Vos amei,
ó Beleza tão antiga e tão nova,
tarde Vos amei!
Eis que habitáveis dentro de mim,
e eu, lá fora, a procurar-Vos!

Santo Agostinho assim proclamou, em oração, depois de muito duvidar da Fé. O filósofo do amor impregnou a filosofia com sua decisão de contemplar o Belo transcendente e o Belo imanente. Sua simplicidade o fez temer o bispado. Aceitou-o como incumbência do ardente desejo de servir. Cristianizou Platão que dualizava o mundo: o eterno e o efêmero. O inteligível e o visível. A luz e as sombras. Agostinho proclamava as belezas naturais e a Beleza Primeira. Platão já havia explicado, no Banquete, as várias formas do amor. E já havia falado da coragem em buscar o belo na ação que vencesse o medo e enfrentasse o inusitado. Assombrado pela obscuridade daqueles que não compreenderam Sócrates, queria ver os freqüentadores de sua Academia livres das amarras escravizantes do julgamento injusto e do preconceito.

Francisco de Assis, "o arauto do grande Rei", inspirou-se na cortesia do meio aristocrático cavaleiroso do final do século XII, acrescentando essência à existência. A alacridade, como expressão do prazer de servir ao outro, que dá a dimensão da beleza. Francisco antecipa os valores renascentistas pelo mesmo fascínio com que Agostinho via, na beleza da natureza, a beleza divina. Em um trecho do Cântico do irmão Sol ou das criaturas, o santo assim diz:

Louvado sejas, meu Senhor,
com todas as tuas criaturas,
especialmente o senhor irmão Sol,
que clareia o dia
e com sua luz nos alumia.
E ele é belo e radiante
com grande esplendor:
de ti, Altíssimo, é a imagem.
Louvado sejas, meu Senhor,
pela irmã Lua e as Estrelas,
que no céu formaste claras
e preciosas e belas.

O luar nesta cidade continente. É preciso ter olhos leves para vê-lo!
Esta é uma bela noite. No seu centenário, a Academia Paulista de Letras recebe um intelectual de refinado saber filosófico e teológico. Um bispo, estudioso dos primeiros séculos da Igreja, cultor do Belo Místico e do Belo relacional. Faz um diálogo, em seus escritos e em sua vida, entre Agostinho de Hipona e Francisco de Assis. Como Agostinho, não planejou o bispado, acolheu-o com obediência. Como Francisco de Assis, decidiu pela gentileza, princípio de vida sacerdotal e episcopal.

Peço permissão para, em homenagem ao neo confrade, discorrer sobre a beleza. A beleza arquitetônica deste teatro centenário, em que atores representam as agruras da tragédia e as idiossincrasias da comédia. Vidas humanas desfilaram e desfilam neste palco. A beleza da música sublime que encerrará o nosso encontro na batuta firme deste vencedor que é João Carlos Martins e nas pausas entremeadas de notas certeiras de seus músicos.

A beleza está na vida gigantesca do Patrono da cadeira 36, Euclides da Cunha. "Os Sertões" foi a obra culminante desse fecundo pesquisador. Sua literatura penetrou Brasil adentro para mostrar a nudez do homem do interior. Sem enfeites, a não ser os próprios de sua semântica rebuscada e precisa. A saudosa Esther, em seu discurso de posse nesta academia, lembrou-se de um trecho da obra ao falar da morte do cavalo e do cavaleiro:

Ao resvalar, porém, estrebuchando malferido, pela rampa íngreme, quedou, adiante, à meia encosta, entalado entre fraguedos. Ficou quase em pé, com as patas dianteiras firmes num ressalto de pedra...
E ali estancou feito um animal fantástico, aprumado sobre a ladeira, num quase curvetear, ao último arremesso da carga paralisada, com todas as aparências de vida, sobretudo quando, ao passarem as rajadas ríspidas do nordeste, se lhe agitavam as longas crinas ondulantes.

Esther de Figueiredo Ferraz, mulher forte, corajosa, pioneira em tantas áreas, confessou que, ao terminar a leitura de alguns trechos de Os sertões, verteu em lágrimas desconsoladas. Sentia-se pasma diante da dor da morte e da beleza da escritura.

A morte era tratada como irmã por São Francisco. Tão irmã quanto as doenças. Nenhuma doença enfeou-lhe a vida.

Querido Dom Fernando, Esther, sua antecessora, viveu a beleza da arte na sua plenitude. Entregou-se à educação, à justiça, à dignidade humana sem economias nem concessões. Privilégio meu ouvir Lygia Fagundes Telles, nossa dama maior da literatura, confabulando com Esther sobre as evidências da traição de Capitu, em Dom Casmurro. Lygia conta que Esther tinha três postulações jurídicas para imputar a traição. Lygia, em uma primeira leitura, ainda adolescente, irritou-se com Bentinho imaginando ser ele um ciumento alucinado. Em uma segunda leitura, tornou-se solidária ao traído. Mudou de opinião. E, depois de debruçar com mais afinco sobre a trama para um roteiro de filme, concluiu com a dúvida. A beleza da dúvida! É melhor, diz ela, do que Bovary de Flaubert. Lá todos sabem da trama voluptuosa. Aqui, mora a dúvida.

Seu legado, Dom Fernando, não é pequeno. Sua causa é a causa do Amor que só é belo quando experimenta o êxodo do comodismo, das emoções precárias em busca do êxtase de fazer o outro feliz. Triste sociedade acomodada que não se lança para ajudar o outro, fraternalmente. É essa a revolução de Cristo. Do Cristo que ousou a lei dos antigos, a que não permitia contato com os leprosos, e com eles fez comunhão; do Cristo que lançou um desafio aos homens sedentos de sangue diante da pecadora: "quem não tiver pecado que atire a primeira pedra"; do Cristo das parábolas e dos milagres, do Cristo da paixão e da Vida. A beleza de Cristo está em fazer do amor a ponte que destrói os muros. A realidade adâmica é transmutada na paixão de Cristo. Deixamos de lado o que nos enfeia para nos revestirmos da beleza de Deus que troca mil reinos por amor a cada um de seus filhos, como está no belo livro do profeta Isaías.

Desde menino, sua decisão foi a de ser ponte, Dom Fernando. Das alterosas, das montanhas abraçantes das Minas Gerais, mais precisamente de Muzambinho para o mundo da palavra e da ação. O árcade Cláudio Manuel da Costa, seu conterrâneo, falou dele mesmo, sem imaginar o teor profético de outro homem, de alma terna, que hoje temos a glória de saudar.

Destes penhascos fez a natureza
O berço, em que nasci! oh quem cuidara,
Que entre penhas tão duras se criara
Uma alma terna, um peito sem dureza!

Ingressou na ordem dos franciscanos. Preparou-se com afinco para a hermenêutica e a pragmática. A interpretação das teorias mais sublimes e a sensibilidade diante dos calvários da vida, do povo caminhante. A especialização na França, no Instituto Católico de Lyon e o doutoramento em Roma, na Teologia dos primeiros séculos da Igreja. Patrística. Santo Agostinho.

Como Esther, professou em salas de aula o amor à educação até ser escolhido pelo memorável Papa João Paulo II para ser bispo da Igreja. Primeiro em Teófilo Otoni, depois em São Paulo, na Arquidiocese de Santo Amaro. Vem ocupando cargos de destaque como Presidente da Comissão Episcopal de Doutrina da CNBB; Presidente do Secretariado de Cultura do CELAM (Conferência Episcopal Latino-Americana); Delegado à Assembléia Especial do Sínodo dos Bispos para a América; Presidente do Regional Sul 1; Membro da Congregação para o Clero em Roma e do Conselho Especial do Sínodo dos Bispos, também em Roma.

Em seu ofício, empresta o sorriso como expressão da beleza do servir a Deus e do servir ao povo.

A beleza ideal está na simplicidade calma e serena, ensinava Goethe.

Em nossa Academia Paulista de Letras, Dom Fernando, sua eleição foi celebrada como o anunciador da boa nova. Aquela que está nas páginas sagradas da Bíblia e nas sagradas páginas de tantos escritos que nasceram de sonhos, na esperança de que a alma humana atinja patamares mais elevados.

A literatura traz às memórias do subsolo, como queria Dostoiévski, os medos e as vitórias da humanidade, da bondade e de sua ausência. Traz a dúvida. Permite ao leitor um percurso ora sombrio ora iluminado, no dizer de Jorge Luiz Borges em O Aleph. Busca a centelha que dá a outra margem de Guimarães Rosa e que empresta os óculos a Miguilim. Que maravilha o doutor que me ajuda a ver!, exclama a criança. Estanca o sangue dolorido de Negrinha, de Lobato, ou de Arminda, do Bruxo do Cosme Velho. Negrinha era a menina que apanhava e que morreu em delírios sonhando com bonecas. E Arminda, a mulata fugitiva cujo único desejo era o de ser mãe. A literatura traz a injustiça porque é justa! Brinca seriamente com os contrários. Faz da vida um oráculo em que a dignidade seja depositada no espaço sagrado. Não há letras belas sem entranhamento, empunhava Aristóteles, decidido a fazer conviver o Belo e o Bom. A beleza tem de ser irmã da bondade sob pena de hipocrisia ou leviandade. O ardor pelo efêmero é névoa que esconde nossa parte mais bela.

Mario de Andrade, em 1920, falava da beleza de São Paulo nos detalhes que era capaz de observar e que levavam ao querer apaixonado pela cidade:

Dizem-na tristonha, escura ... Mas no momento em que escrevo, Novembro anda lá fora, desvairado em odores e colorações. Eu sei de parques esquecidos em que a rabeca dos ventos executa a sarabanda por que pesadamente bailam os rosais ... Eu sei de coisas lindas, singulares, que Paulicéa mostra só a mim, que dela sou o amoroso incorrigível e lhe admiro o temperamento hermafrodita...
Procurarei desvendar-lhe aspectos, gestos, para que a observem e entendam. Talvez não consiga. Ponho-me a pensar que minha terra é como as estrelas de Olavo ... difícil de entender ...

Kant afirma que o Belo é uma finalidade sem fim. Em outras palavras, um prazer desinteressado produzido pela contemplação e pela admiração de um objeto ou de um ser. Como, por exemplo, o amor pela mulher amada.

O príncipe dos poetas brasileiros, decano de nossa academia, Paulo Bomfim homenageando sua amada Emy, em o Cancioneiro, escreveu:
Éramos jovens e o tempo
Se prendia em nossos dedos.

Lembra-me Tomás Antônio Gonzaga em homenagem à sua musa:

Enquanto pasta alegre o manso gado,
minha bela Marília, nos sentemos
à sombra deste cedro levantado.
Um pouco meditemos
na regular beleza,
Que em tudo quanto vive nos descobre
A sábia natureza.

Schopenhauer fala do belo como o reconhecimento da idéia geral no particular por um ser que conhece, não enquanto indivíduo, mas enquanto sujeito puro isento de vontade. Uma bela ação. Uma ação moral.

Como a ação política. Hanah Arendt, a judia que sofreu os reveses do ódio e do desamor de uma das maiores chagas da história contemporânea, o holocausto, nos presenteou, por obra derradeira, A Condição Humana ou O Amor Mundi. A beleza está na compaixão. Não na vingança ou no ódio horribilíssimo. É a compaixão, o respeito pelo outro que alimenta o bom político. A ação ganha beleza quando se reveste de competência e generosidade. A política é a alta caridade no dizer do já citado Bispo de Hipona, porque o político experimenta o êxodo e o êxtase: o sair de si, do seu recanto para cantar a canção da boa ação. E quão belo é o poder quando a sua semântica é a do servir.

Schiller, em A Variedade, poetiza:

Numerosos são os bons e os inteligentes, mas todos contam por um
pois todos são dominados pelo conceito mas não, infelizmente, pelo coração amante.
Triste é o império do conceito: tem mil formas mutáveis.
Só fabrica, pobre e vazio, uma única.
Mas a vida e a alegria erguem-se plenamente onde a Beleza
Reina: o Uno eterno reaparece em mil formas.

Querido presidente José Renato Nalini, Presidente do Centenário. Presidente das obras de restauro e da grande obra de nos conduzir, como queria Drummond, de mãos dadas. Porque o mundo é grande demais e a vida é curta demais e, de mãos dadas, a viagem fica mais bonita.

Amigas e amigos, que a beleza de vida de Fernando Antonio Figueiredo, nos sirva de inspiração. Que o seu acolhimento nos leve a perseguir incansavelmente um mundo sem preconceitos. Nada de hierarquia dos viventes. A cidadania é para todos. E a beleza está na diferença. Quem é o maior? Ou o melhor? Quem é o mais belo? Longe de mim pontificar verdades, mas um palpite modesto emprestado dos utópicos, de Morus, Bacon, La Boètie ou Galileu Galilei. O mais belo é o que é capaz de experienciar a beleza alheia. Ou ainda no racionalismo cartesiano: o mais belo é o que se permite inspirar o pensamento puro e duvidar de tudo o que seja a negação da bela existência.

Existimos, senhoras e senhores, para que o mundo seja mais bonito. Sem egocentrismos nem falsa modéstia. Conferimos dignidade à humanidade por aplaudirmos a existência que é melhor com as letras, a literatura, a filosofia, a teologia ou a simplicidade poética da também mineira Adélia Prado:

Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é sentimento.

Com os meus mais belos sentimentos de amizade, em nossa centenária Academia Paulista de Letras , saúdo-o, caro confrade. Entre.

Traga consigo Agostinho de Hipona e Francisco de Assis. Traga também as suas inquietações. Mas não se esqueça de trazer a esperança. A esperança, convidada freqüente de sua prosa, vai dar mais acalento ao nosso recanto das letras. À beleza de Academia que temos a honra de freqüentar.

Seja bem-vindo.
Gabriel Chalita



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