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DISCURSO DE RECEPÇÃO PELO ACADÊMICO GERALDO CAMARGO VIDIGAL
Acadêmico: Ives Gandra da Silva Martins
Em verdade, quando se aproxima dos portais da augusta Academia Paulista de Letras um príncipe da advocacia, um gladiador da luta pelo direito, um cultor exponencial do estudo, da pesquisa, do ensino, já da ética, já da técnica, já das letras jurídicas - e que excede dessas letras avassalar o âmbito do poema, do conto, do ensaio, da indagação histórica, do jornalismo -, é forçoso perdoar os pequenos deslizes, compreender a emoção que neles se revela, esquecer o que não poderia estar contido na personalidade de quem foi julgado digno de integrar-se no elenco ilustre dos imortais de Piratininga.

Os nobres acadêmicos, as figuras notáveis que se reúnem na platéia, os jovens que a esta cerimônia acorrem - todos nós ouvimos! Não há como possa alguém duvidar.

É o caso de indagarmos: o patriarca José da Silva Martins, alvo da mais elevada admiração de todos nós; varão que, no culto que devota a Santo Antonio, foi sagrado cavaleiro da virtude cristã da humildade; espírito que se depurou e esplendeu à luz e ao som da grande música - como terá reagido? Como virá ainda a comportar-se?

Pela primeira vez - estou certo! -, pela primeira vez, nos fastos desta casa, um acadêmico ainda nem empossado se atreve a insinuar que, sob algum aspecto, é mais brilhante, mais capaz, mais realizado que seu próprio padrinho!

- Não sei se Geraldo é melhor pianista do que eu - reptou-me Ives.

Pois, informo: nos dias de minha infância, dominei, até a 6ª lição, os ensinamentos do avançadíssimo Método Schmoll de Ensino de Piano.

E convido a todos para a minha exibição dos números de "Nini et bebé", "La premiére valse", "La bouquetiére" - as notáveis peças do Schmoll, 4ª, 5ª e 6ª lições, respectivamente, que, por volta de 1929, aprendi com razoável proficência, nas lições de piano de minha mãe.

Em verdade, quando se aproxima dos portais da augusta Academia Paulista de Letras um príncipe da advocacia, um gladiador da luta pelo direito, um cultor exponencial do estudo, da pesquisa, do ensino, já da ética, já da técnica, já das letras jurídicas - e que excede dessas letras avassalar o âmbito do poema, do conto, do ensaio, da indagação histórica, do jornalismo -, é forçoso perdoar os pequenos deslizes, compreender a emoção que neles se revela, esquecer o que não poderia estar contido na personalidade de quem foi julgado digno de integrar-se no elenco ilustre dos imortais de Piratininga.

Ao longo do último quarto de século, a trajetória que, sem perder de vista o puramente literário, Ives Gandra da Silva Martins percorreu nos pretórios, nas escolas de direito, nos simpósios, nas revistas jurídicas, nos jornais, nos livros de direito que publicou é um caso à parte em nosso país.

Quem pode citar exemplos cumulativos de ação, de iniciativa, de criatividade semelhantes aos de Ives Gandra da Silva Martins, filho do patriarca José da Silva Martins, irmão dos músicos altíssimos que são João Carlos e José Eduardo Martins? Ives, pai de jovens advogados que principiam a brilhar - que vê continuar neles o carisma que o clã Martins herdou de seu patriarca?

Somente entre 1982 e 1991, Ives publicou quarenta e cinco livros jurídicos, de nove diferentes editoras.

Outros quarenta e cinco livros seus, em co-autoria com outros, foram editados, nesse período, alguns em cinco, seis, sete volumes.

Somente entre 1982 e 1987, treze opúsculos, ou séries de opúsculos, foram por ele escritos ou coordenados. Duas dessas séries são formadas de vinte e sete volumes, cada uma.

De sua incessante atividade na criação, na organização, no desenvolvimento de centros coletivos de ensino e pesquisa, resultaram quinze cadernos de pesquisas tributárias, quatro cadernos de direito econômico, dois de direito natural, três de estudos sobre o amanhã.

Reuniram-se centenas de juristas nessas pesquisas, nos simpósios, nas obras coletivas que criou, organizou e desenvolveu.

A partir de 1982, mais de quinhentos pareceres seus foram emitidos.

Mais de trezentos seminários se realizaram.

Ao longo desse período, os jornais mantinham o nome de Ives invariavelmente registrado, nos artigos que publicava, nas entrevistas que deu, em manchetes, em sueltos, em páginas especializadas nos debates do direito, no calor do noticiário jurídico-político.

Conheci Ives - o coordenador, o aliciador, o agitador do direito muito antes da década de 80.

Findavam-se os anos 60 quando, nas livrarias que freqüentava, comecei a ver presente um jovem que vinha cumprimentar-me, que tinha sempre um sorriso amável e uma palavra simpática.

Não sabia ainda que era Ives.

Um dia disse-me o rapaz que estava organizando um livro de comentários sobre o Código Tributário Nacional.

Convidou-me a participar do livro. Eu responderia pelos comentários aos arts. 83 a 95 daquele Código, que cuidavam da distribuição de receitas tributárias.

Anos depois, ainda na década de 70, veio o livro a ser publicado, em quatro volumes.

Os artigos que tinham ficado a meu cargo, evidenciaram-se de tratamento muito mais difícil do que eu, no primeiro instante, supus.

Na realidade, os arts. 83 a 95 do Código Tributário estavam quase integralmente revogados, por força de normas ulteriores a 1966, data de edição do Código.

O cotejo entre a orientação desses artigos de lei e a daqueles que os substituíram envolvia considerações de critérios de política econômica e financeira, indicação de elementos da organização federativa do País, análise dos mecanismos da distribuição das receitas, de seus vícios e méritos, proposições visando ao aprimoramento do que era imperfeito.

Meu trabalho veio a ser publicado no segundo dos quatro volumes.
Ives teve sempre um sorriso para o desconforto que sofri com o retardamento na entrega do trabalho.

A paciência que mostrou comigo, teve-a também com as dezenas de outros estudiosos que participaram da elaboração dos comentários aoCódigo.

Anos depois, em 1976, foi editada a Lei n. 6.404, que veio revolucionar a disciplina jurídica das sociedades anônimas, em nosso país, buscando no Brasil, com a Lei n. 6.385, a boa estruturação do mercado de valores mobiliários e de institutos do mercado de capitais, superando a obsoleta sistemática que até então prevalecia.

Foi, na verdade, sob a inspiração dos mutirões imaginados por Ives, quando da análise do Código Tributário Nacional, que procurei os editores daqueles comentários e me propus coordenar estudos sobre a Leidas Sociedades Anônimas e a Lei do Mercado de Valores Mobiliários.
Soube então, pelos editores, que Ives já lhes propusera coordenar a mesma tarefa.

Procurou-me Ives no dia seguinte: e ambos, em conjunto, coordenamos a edição de cinco volumes de comentários da lei e de vinte e sete cadernos reunindo pequenos estudos monográficos sobre temas das sociedades por ações.

A partir de então, estivemos muitas vezes reunidos nas tarefas de advocacia - no Instituto dos Advogados de São Paulo, de que Ives foi presidente, como eu anteriormente tinha sido; no Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil, em São Paulo, ao qual voltei, como conselheiro, para retomar, com Ives, esforços que era necessário realizar; em simpósios, em seminários, em conferências - que o dinamismo de Ives engendrava ou às quais éramos ambos chamados.

Os trabalhos de Ives abrangiam as esferas do direito constitucional, do direito econômico, do direito empresarial, da ciência política, da ciência jurisprudencial- embora brilhando sempre no âmbito do direito tributário, capítulo da ciência jurídica em que desde muito moço se especializara.

Ao longo dos anos 80, ampliando sempre os horizontes de seu trabalho, aproximou-se Ives, pouco a pouco, do direito econômico, que, desde o início da década de 70, centrava minhas indagações jurídicas.
Tendo Ives prestado concurso de títulos e provas na Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie, tornou-se, naquela escola, o fundador da nova disciplina, que, anteriormente, só em nossa Faculdade do Largo de São Francisco se implantara, por concurso dessa espécie, quando assumi a titularidade da disciplina.

A evolução e a multiplicação dos horizontes do estudioso do direito que é Ives levou-o, de sua marcante especialização nos critérios, nas práticas, nas técnicas e nas rotinas do direito tributário - de intensa relevância social -, para as preocupações amplíssimas do direito empresarial, do direito econômico, do direito constitucional, da teoria do poder.

O princípio constitucional que subordina a edição e a exigência de tributo à autorização ou vetos da própria Constituição lançou a ponte inicial para essa expansão de cenários, nas tarefas do advogado, do estudioso, do professor.

O peso das incidências tributárias sobre a atividade da empresa e sobre diferentes manifestações da presença empresarial o conduziram às múltiplas questões do direito de empresa.

Do conjunto desses temas resultou sua gradual formação dos temas do direito econômico, em que se tomou mestre.

Durante muito tempo, acompanhando o crescer dos trabalhos de Ives nas letras jurídicas, ignorei participação sua em outras esferas literárias.

Aos poucos, porém, fui sabendo de versos que lhe valeram, ainda muito moço, o primeiro prêmio dos "Jogos Florais da Comunidade Luso-Brasileira", em 1965; de contos, ensaios, estudos históricos que publicara.

Soube que, ainda antes, em 1956, editara os poemas de Pelos caminhos do silêncio.

Mais cedo ainda, quase menino, publicara já, em jornal de Ribeirão Preto, poemas, contos, artigos e também ensaios - inclusive doze estudos sob o título A obra trágica de Racine.

Colaboração em numerosos jornais e revistas, no Brasil e em Portugal, haviam veiculado freqüentemente trabalhos literários e históricos seus, desde muito jovem.

Convidei-o, então, a participar do Conselho de Essência, a revista de poesia que, ao se abrirem os anos 80, fundei com Benedicto Ferri de Barros, José Geraldo Nogueira Moutinho e Betty Vidigal.

Tenho a pretensão de haver, com meu convite, levado Ives a se reaproximar das musas: em 1983, publicava ele, com Rui Assis e Santos, o livro Tempo pretérito, um só volume reunindo poemas e dois autores.

Desde então acompanhei numerosas outras atividades de Ives dedicadas à literatura e à História: conferências sobre personalidades da História brasileira e da História portuguesa; palestras em cursos de literatura, conferências sobre Bilac, sobre Menotti del Picchia, sobre a geração de 45; novos contos, ensaios literários, artigos críticos.

Ingressando no Clube de Poesia, veio Ives a tornar-se, em 1988, seu diretor de edições.

Seus trabalhos literários, dessa forma, somam-se à sua intensa atividade de professor de direito e advogado, credenciando-o a vir ocupar, em nossa Academia, a cadeira 31, vaga pela perda do mestre Alfredo Buzaid, escritor de escol, cuja elegância de dizer transformou em obra de arte os profundos estudos jurídicos que elaborava.

Apesar dos rompantes das afirmações pianísticas de Ives, os indicadores de sua modéstia, na ação, no pensar, no esgrimir, são indisfarçáveis: entre 1982 e 1985, Ives teve, em diferentes obras, nada menos de onze prefaciadores - como se dependesse de apresentação o intelectual que se afirmava por todas essas obras e iniciativas.

Dentre os prefaciadores de Ives, ressalta, como um valor que se impõe a todos, o prefácio do acadêmico Paulo Bomfim, príncipe dos poetas brasileiros, que abriu o livro de poemas de Ives, Duas lendas, editado em 1991.

Data de 1990 o prefácio de Paulo, que, vendo adquirir a Lenda de Marabá "dimensão nova", nas mãos de Ives, aponta o sentido de contemporaneidade, na descoberta da trilha dos mitos, na Floresta Amazônica.

O poema, assinala Paulo, reclama um grande compositor que o musique.

Entre os prefaciadores, ao lado do grande nome de Paulo, salientam-se os de Canuto Mendes de Almeida, o querido professor que ensinou minha geração; o de Roberto Campos, cujo talento é reverenciado mesmo pelos adversários; o de Ruy Mesquita, o grande jornalista; os de Geraldo Ataliba, Alberto Xavier, Gilberto Ulhôa Canto, três dentre os mais destacados tributaristas do País; o do Min. Paulo Lustosa; o do respeitado Juiz Luiz Carlos de Azevedo; os de Bernardo Ribeiro de Moraes, de Paulo de Barros Carvalho, de Fábio Fanucchi - uma plêiade de grandes nomes do pensamento jurídico em nosso país.

Só não creio possa Ives ser modesto em face do alvorecer das tarefas cumpridas por seus filhos, quando, entre os livros que agora publica, já se compreende co-autoria entre Ives-pai e Ives-filho.

E vou confessar: muitos dizem que é justificada, no literato e no jurista, a vaidade do virtuose do piano.

Há até, quem proponha competições entre Ives, João Carlos e José Eduardo para apurar qual dos três deveria representar o Brasil em exibições internacionais da grande música.

Quem realmente não tem oportunidade de ser modesta é Ruth, a doce responsável pelo clima e pela organização em que podem florescer o dinamismo de um Ives Martins e os momentos iniciais de explosão de seus filhos, a responsável principal, sob a égide do patriarca da família, pela continuidade que todos esperamos dos Gandra Martins, no milênio que se aproxima.

Estudioso, escritor, mestre, professor de direito, como os meus mestres Spencer Vampré e Alfredo Buzaid; jornalista, como Rangel Pestana, Hipólito da Silva e Carlos Rizzini; professor, advogado, pianista Ives Gandra da Silva Martins: a Academia Paulista de Letras é a sua casa.





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