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POR QUE NÃO CONSEGUIMOS DECOLAR?
Acadêmico: Bolívar Lamounier
O entendimento do medíocre desempenho da América Latina requer um decidido aprofundamento da perspectiva histórica

Por que não conseguimos decolar?

Por que a América Latina permanece afundada na mediocridade, incapaz de encontrar o caminho para o crescimento sustentável e o desenvolvimento social?

Na quarta-feira passada (20/9), o Centro de Debates de Políticas Públicas (CDPP) e a Fundação Fernando Henrique Cardoso prestaram uma relevante contribuição a esse debate. A base para a discussão foi o documento intitulado Why Does Latin America Underperform (livremente traduzível como Por que a América Latina não mantém um nível de desempenho à altura das necessidades?), patrocinado pelo Grupo dos Trinta, um grupo de economistas de renome mundial, sediado em Washington D.C. O documento foi apresentado pelo economista Armínio Fraga, coordenador brasileiro do estudo.

Estruturado em oito seções, o documento dedica as sete primeiras a uma minuciosa exposição das estatísticas econômicas referentes aos últimos 30 anos, e a seção final ao que denomina A problemática economia política da região, ou seja, aos sistemas políticos. Esta é uma boa nova: os economistas finalmente estão dando a devida atenção à tragédia política latino-americana, sem dúvida responsável por grande parte de nosso atraso e pela atual estagnação.

Mas a boa nova não é assim tão boa, desde logo porque, no meu modo de ver, essa deveria ser a primeira, e não a última seção. É certo que dão relevo à aberração latino-americana de combinar sistemas de governo presidenciais com sistemas eleitorais proporcionais, aspecto intensamente discutido no Brasil há pelo menos três décadas. Consideram, também, que o baixo nível de confiança nas instituições por nossas sociedades dificulta a governabilidade.

Quanto a este ponto – baixos índices de confiança nas instituições, fato também característico de numerosos países fora da América Latina –, creio serem cabíveis algumas ressalvas. Estranho, na América Latina, seria as sociedades se declararem satisfeitas com seus governos, sabidamente de má qualidade, salvo as exceções de praxe. Além do que, o argumento pode ser revertido. A insatisfação, captada dezenas de vezes pelas pesquisas de opinião, pode até ser positiva, funcionando como uma permanente demanda de accountability. Sem ela, governos ineptos e insensíveis às condições de vida das camadas de baixa renda poderiam perder o escasso sentimento de urgência que porventura ainda mantenham. A desconfiança a que o estudo se refere é, portanto, um fenômeno complexo.

Até meados do século passado, quando a maioria da população vivia no interior rural ou em pequenas comunidades e não participava do processo eleitoral, essa questão nem entrava na pauta do debate público. No Brasil, por exemplo, a proporção da população habilitada a votar era cerca de 15, porcentual atualmente situado na casa dos 70, o mesmo que se observa em todos os países desenvolvidos. Pode-se daí inferir que o aumento se deu principalmente entre as camadas de baixa renda, hoje concentradas em grandes cidades e dependentes de serviços públicos de má qualidade. Nesse sentido, a má vontade em relação ao poder público deve ser vista como uma atitude perfeitamente racional.

Um problema a sublinhar é, por conseguinte, que a busca de uma explicação para o mau desempenho da América Latina ficou aquém de seu objetivo, a principal causa de tal deficiência sendo, sem dúvida, sua limitada perspectiva histórica.

Focalizando apenas a América do Sul, é razoável considerar que toda a região teria se beneficiado se os dois países principais, Argentina e Brasil, tivessem melhorado substancialmente seu desempenho por volta de 1930, ou seja, nove décadas atrás. Mas o que aconteceu, como sabemos, foi justamente o oposto. Em ambos os casos, as intervenções militares daquele ano levaram, na esfera política, a um prolongado período de anarquia, ditaduras, instabilidade e desvarios ideológicos, e, no plano econômico, a uma fatídica opção pelo nacional-desenvolvimentismo, vale dizer, a uma crença descabida no crescimento induzido pelo Estado, por meio da chamada Industrialização Substitutiva de Importações (Isis).

O ponto de partida esboçado no parágrafo anterior, agravado pela guerra fria nos anos 50, escancarou as portas para o golpismo (todos nos lembramos das tragédias que atingiram os governos de Getúlio Vargas e João Goulart) e a uma persistente instabilidade, que se manifestou – permitam-me frisar – inclusive durante os 21 anos de governos militares. Cabe lembrar, a esse respeito, que o general Costa e Silva se autonomeou ministro da Guerra antes mesmo da indicação pela cúpula militar do Marechal Castelo Branco para a Presidência. Com essa intervenção, Costa e Silva já se impôs como sucessor de Castelo Branco e como oponente das reformas econômicas a serem implantadas pelos ministros Octávio Bulhões e Roberto Campos.

Cabe, pois, concluir que o entendimento do medíocre desempenho da América Latina requer um decidido aprofundamento da perspectiva histórica.


Publicado no jornal O Estado de São Paulo
Em 23 de setembro de 2023









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