Compartilhe
Tamanho da fonte


TRILHOS
Acadêmico: Anna Maria Martins
"Preferência desde sempre, a viagem de trem. O sacolejar macio cruzando o Casqueiro, subindo a serra úmida e enevoada, a vegetação encoberta pela neblina, a mata entrevista das janelas, o alto da serra. Paranapiacaba e depois a planície."

A rota mostrava-se áspera, demasiado curvilínea, à sua visão bastante conturbada. Voltas e travessias surgiam ao longo de um percurso com perspectivas nebulosas. O que iria fazer na ferrovia? Onde se encaixaria seu trabalho?

Caminhando de um lado a outro na estação matriz, fixava o olhar na luminosidade que se fragmentava no colorido dos vitrais e tentava digerir a notícia. Da cultura para a ferrovia. Mudança de sede e de função.

O ruído dos trens atravessava plataformas, invadia o saguão e os espaços internos. Morria no hall monumental, diminuindo decibéis junto à majestade das colunas e à realeza das palmeiras.

Os vitrais. Ergueu de novo os olhos para os vitrais, ficou imaginando quão árduo e criativo seria o trabalho para a realização de tal obra de arte. À medida em que a vista percorria figuras e cores, uma sensação de bem-estar clareava-lhe a mente.

A memória foi buscando trilhos, pequenas estações encravadas nas áreas rurais, trens resfolegando entre mata e rio. Bitola larga ou estreita, a ferrovia fazia parte do seu percurso. A menina que apanhava o trem na Estação do Valongo iria terminar na Júlio Prestes sua trajetória profissional.Curvas da ferrovia, voltas do destino.

Preferência desde sempre, a viagem de trem. O sacolejar macio cruzando o Casqueiro, subindo a serra úmida e enevoada, a vegetação encoberta pela neblina, a mata entrevista das janelas, o alto da serra. Paranapiacaba e depois a planície.

Baldeação na Luz. No carro Pullman da Paulista, as cadeiras giratórias e com conforto até Jundiaí. Mais baldeação, e então a Ituana com sua bitola estreita.

Os trihos estendem-se, acompanham o rio encachoeirado, a água limpa fluindo sobre pedras e musgo. O trem para em cada estação: Ermida, Itupeva, Monte Serrate, Quilombo - onde a menina e a família descem. A locomotiva puxa os vagões para mais longe: Itaici, Indaiatuba e a viagem prossegue. Já não mais a ferrovia, mas o trole da estrada de terra, atravessando pastos e cafezais. À noite, no terraço da sede, o clarão do trem ao longe ilumina os trilhos, vara a escuridão.

Na plataforma da Júlio Prestes, a memória leva a trilhos mais longínquos. Lisboa a Paris, Los Angeles a San Francisco, percursos sem cronologia, datas apagadas, cenário vivo na lembrança. A ferrovia ao longo do Pacífico, os vinhedos da Califórnia, as pequenas cidades rurais, imagens antigas recriando-se nítidas.

Olhar fixo nos vitrais, memória acelerada em trilhos pregressos e a vida trafegando em retrocesso.

Sai da estação, caminha pela Duque de Caxias. No cruzamento da Avenida Rio Branco, parada no sinal, vira-se de frente para a Júlio Prestes. A torre e o relógio destacam-se na importância do edifício. O relógio cujos ponteiros marcariam o seu percurso na ferrovia - derradeira etapa da trajetória profissional.



voltar




 
Largo do Arouche, 312 / 324 • CEP: 01219-000 • São Paulo • SP • Brasil • Telefone: 11 3331-7222 / 3331-7401 / 3331-1562.
Imagem de um cadeado  Política de privacidade.